5 de abril de 2009

Escultura

Era uma rocha, apenas. Apresentava-se como quem ainda era uma parte, e não um todo: ela ainda não sabia ser nada além de uma simples rocha, apenas sentia que era diferente das demais. Mas não sabia explicar o porquê.
Seus traços eram rígidos: eram tão descompromissados que nem chamavam o olhar.
Ela queria ser diferente, e não conformar-se em ser uma simples rocha para sempre, assim como todas as outras. E, pensando nisso, ela nem notou quando o Artista resolveu reclinar-se sobre ela.
Mas foi justamente ele quem a viu de verdade pela primeira vez.
Quando a encarou bem de perto, ele vislumbrou que dentro de toda sua rigidez havia um brilho alaranjado que pulsava. Não teve dúvidas de que aquela rocha merecia seus esforços de artesão.
Ele tinha mãos macias, que arriscaram desenhar sobre a aspereza daquela superfície. Ao invés das mãos se ferirem, foi a rocha quem cedeu: a suavidade daqueles gestos penetrou em cada sulco, e amaciou pequenas imperfeições eclodidas em sua textura. Ele prosseguia acreditando que nada nela era implacável, e ela esforçava-se para que os toques daquele Artista fossem cada vez mais transformadores.
Ele sabia disso, e por isso investiu na beleza bruta que seus poros exalavam. Ele não quis conformar-se com uma pedra fosca, e por isso transformou-a em Arte.
O Artista entregou-a seu tempo, e ela aceitou humildemente. Ele depositou com brandura sobre ela palavras e toques, e ela entregou a ele tudo de mais colorido que havia dentro dela: esmeraldas e raios de sol.
Era fascinante a poesia de seus gestos. As mãos leves e ao mesmo tempo poderosas, cada movimento perfeitamente encadeado, como uma dança ao som da melodia perfeita do Universo.
Paciente como um beija-flor, ele soube entalhar cada detalhe novo àquela textura outrora tão rudimentar. Rodeava-lhe aos poucos, enfeitava seus cantos mais obscuros, refinava-lhe os traços, e suavemente dava a ela a chance de ser um todo, e não apenas mais um pedaço.
Com sabedoria moldava novas curvas, antes inimagináveis àquela tão sólida rocha. Pois que sua dureza não era assim tão incontestável, e agora o Artista respondia com a sua obra àqueles que antes lhe disseram que ele não sabia o que estava fazendo.
Ele entregava-lhe toda técnica e todo seu talento, e ela absorvia-os como uma aprendiz, tornando-se parte dele.
Minuciosamente, foi-se construindo uma nova forma. Ela tornou-se o que havia de melhor dentro dela mesma: lapidando pacientemente a rocha mais bruta, o Artista fez brotar dali uma delicada escultura, que atraía o olhar de todo ser com alma sensível.
E assim, foi ele quem desvelou aos poucos a pulsão viva que estava no âmago de sua obra, e finalmente seu brilho intenso invadiu tudo ao redor.
O Artista sorriu para sua obra, e ela brilhou intensamente para ele. Agora, a luz alaranjada era mais intensa, e aquecia o coração de quem a pudesse ver.
As ondas do mar eternizaram a inédita beleza que o Artista talhou, o sopro do vento deu-lhe vida, e ela aprendeu também a passear pelo mundo transformando rochas tímidas em esculturas exuberantes.

E o mundo nunca mais foi o mesmo...

1 de abril de 2009

Duetos e duelos.

Numa observação panorâmica sobre as coisas, chego à conclusão que tudo se constitui a partir da relação entre, pelo menos, dois elementos.
O som só surge a partir do atrito, que implica em haver dois. O amor pede que existam dois. Não necessariamente dois que amam, basta um amante e um amado. A palavra só surge a partir de dois: quem a fala e quem a ouve. Se ninguém a ouve que seja o papel, então: o escritor e seu papel. O escultor e sua pedra.
Ninguém faz nada por si só, pura e simplesmente. Um homem precisa de alguma outra coisa, de algum outro alguém. As coisas precisam uma das outras para existirem, para serem coisas e construírem-se da forma que são.
É do atrito que se faz a vida, a beleza do existir. Da relação entre as coisas, dos contrastes de cores, dos sons. Os encontros dos campos gravitacionais giram o mundo, e regem a complexa inter-relação entre todos os sistemas e galáxias que ainda desconhecemos.
O movimento só se dá quando há uma dupla, pelo menos. E essa dança dá luz a duetos encantadores, harmonias deliciosas e lindas de se ver. O encontro da seda com a pele, do mar com a areia, de dois lábios que se beijam, do vento com as folhas que desprendem-se das árvores. São duetos que quase bailam, rodopiam sobre nossos corações.
Ora, duelos são igualmente encontros, e tão inevitáveis que penso que já deveríamos estar mais acostumados com eles. O desequilíbrio do duelo é necessário, capaz de transformar qualquer dueto antigo, capaz de gerar novos equilíbrios.
Vivo trocando entre o dueto e o duelo: do dueto tiro a calmaria necessária para aquietar-me diante de tantas ideias que estão nos bastidores de meus escritos, e do duelo vem a força necessária para sustentar essa torrente. Esses dois movimentos são tão necessários quanto são complementares, e entendo que a minha briga eterna com as palavras é um duelo que tem um quê de beleza.
Amo as palavras com a mesma intensidade em que às vezes odeio-as, e vivemos nessa relação sinuosa, instável e apaixonada, que sei que é eterna. Nelas posso encontrar refúgio, posso afogar-me e salvar-me. Ao mesmo tempo, elas podem ser insuficientes e traiçoeiras, fungindo de mim justamente quando mais preciso delas. Da minha luta e com as palavras surgem alguns textos, algumas poesias, algumas crônicas, enfim... coisas que brotam dessa nossa relação que passeia entre o dueto e o duelo constantemente.
Alguns fragmentos dessas coisas filhas de um atrito às vezes gentil, às vezes vendavalesco, estarão aqui, esperando por algum leitor curioso que talvez aprecie um dueto açucarado. E que não se assuste com duelos sangrentos.