22 de setembro de 2011

Encontro




- A tua arte é uma baboseira de criança.
Sem sutileza alguma, o Músico iniciou a conversa. Já de partida, empurrou essa frase para os ouvidos do Ator que, atordoado, não conseguiu responder à altura imediatamente:
- Como?
- Baboseira de criança. A minha filha de seis anos constrói jogos de faz-de-conta melhores do que os teus. Ela cria vozes, imita, ela improvisa as mais hilárias cenas. E, quando necessário, é capaz de fazer brotar lágrimas dos olhos. E, pasmem todos, acredito muito mais nela do que em ti, Ator. 
- Pelo menos, meu caro, guardamos um pouco dessa jovialidade que tu, Músico, perdeu no instante em que quis tornar tua arte quase uma ciência exata. Tua arte tem tão pouco de arte, meu caro. É tão pouco pulsante, é tão entediantemente avaliável e quantificável. Quase uma matemática.
O poeta, que até então mantivera-se escrevendo algo em seu bloco de notas, olhou sobre os óculos pousados na ponta do nariz e interveio:
- Que há de errado com a matemática, meu caro Ator? A métrica é capaz de magias. E invertê-la, também. Liberte-se desses preconceitos vis. Teu desespero por liberdade acabará por levá-lo à falência.
O Músico riu gostosamente: todos sabiam que o ator era o mais mal pago dos artistas.
- Vem falar de preconceitos a mim? Por que não se refere ao preceptor dessa vã discussão?
- Que posso eu dizer sobre o Músico? Para mim, apenas uma arte calada. Ainda tenho dificuldade em qualificar como arte algo que não usa a linguagem, esse presente que os deuses entregaram em mãos humanas.
O Músico a essa altura já estava com as faces rubras e com um grito raivoso dentro da boca, mas foi detido pelo Pintor, que tomou a palavra para si. Sua voz saiu rouca e fraca, como quem não fala há semanas, mas sua raridade calou todos os demais.
- Um engano leigo demais para um profissional experiente como és, Poeta. E quem disse que a linguagem reside apenas na palavra? O que não é palavra além de um mero desenho tosco e repugnante, capaz apenas de transmitir parcialmente o que penso e sinto? Sim, pois quando digo 'flor', entenderás algo que é flor para ti. Mas nunca saberás qual é a flor sobre a qual falo, ainda que eu descreva-a exaustivamente. Mas, se traço no papel a flor que tenho em minha cabeça, num instante acessará todas as cores e sensações que trago em meu íntimo. Saberás a exata cor das pétalas do girassol que tenho meu jardim.
Apesar de todos os três terem algo a falar, as barbas brancas do Pintor impunham certa necessidade de reverência. Para o Ator, três segundos de silêncio já haviam sido reverência o bastante:
- Pois proponho um desafio ao respeitável Sr. Pintor: pegue tuas tintas, pincéis, ou quaisquer outras armas gráficas que possua e represente, então, o amor. E não qualquer amor, mas o teu amor. Quero ver tua tela e compreender exatamente o que é o teu amor, como se visse uma margarida ou um girassol que cultives em teu jardim.
O Pintor arregalou os olhos de um jeito como só fazia quando estava mergulhado em seus trabalhos. E o Ator continuou:
- O afeto que desperto nos meus expectadores só acontece porque a minha arte sou eu. Não preciso de complicados instrumentos, de papel ou tinta. A minha arte é esse corpo imperfeito, essas emoções universais que explodem pela pele.
- É por isso que tua arte é efêmera. É por isso que não tens memória. Pergunto-lhe o nome de um ator da Grécia Antiga, meu amigo, e garanto que não saberá. Mas conheces os célebres dramaturgos tornados imortais por suas tragédias e comédias.
- Queres fazer arte para ser lembrado? - provocou o Músico.
- Oh, Músico, e tu não queres? - o Pintor o fitava com firmeza - Não me venha com falsos idealismos. É o que queremos, ora. Sabes disso.
Com o susto do elemento comum que os uniu, um riso tímido escapou do canto direito das quatro bocas, que antes proferiam tão diferentes discursos. Perceberam, num segundo, que o que mais queriam era dobrar  a condição implacável da vida: a morte.


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Ainda não decidi se esse conto acabou ou não. Decidi publicá-lo mesmo em estado de rascunho.