17 de outubro de 2012

O Fim






O livro ainda está entre minhas mãos. Releio a última frase, e olho o vazio que resta na página. Acho que é um pouco do que me resta desse instante: uma alma branca.
Viro a página como se buscasse um epílogo inexistente ou um capítulo secreto reservado apenas para os mais curiosos. Procuro em vão por uma frase mais, uma espécie de consolo para meu abandono.
Mas isso é esperar por uma ressurreição. E, para mim, é certo que o final de um livro é uma pequena morte. Jazem ali os desejos que compartilhei com suas personagens, e morre esse mergulho fantasioso que encheu meu mundo de cores diferentes das de sempre. Num empuxo violento, volto à superfície branca da realidade. Sinto meus pés tocarem o chão mais uma vez, e meus sapatos parecem duros e ásperos.
Aproximo o livro de meu rosto e inspiro profundamente, sem me dar conta da estranheza de tal cena. Não importa, é como se beijasse um amor carinhosamente pela última vez. Pouso o livro em meu colo. Sei que aquela é a nossa despedida.
Nada me preparou para este momento, nem mesmo o tato das páginas emagrecendo em minha mão direita. Perco um mundo que era nosso, do livro e meu. Ganho uma porção de memórias que, se forem boas o bastante, se tornam inesquecíveis.
Sempre achei que havia um quê de mágico nesse instante fugaz em que olhos terminam de correr a última palavra de um livro. É uma espécie saudade de algo que nunca tive.
Depois, o livro volta para a prateleira. Agora, ele torna-se um velho amigo, e um dia abrirei suas páginas amareladas para relembrar as histórias que vivemos juntos, como a nostalgia compartilhada pelos amigos de colégio. Sou capaz de perdoá-lo pela crueldade de ter chegado ao fim quando observo que, assim como o toque dos meus dedos envergou suas beiradas, eu também carrego em mim, para sempre, sedimentos de suas palavras.
  


23 de agosto de 2012

Condenados





Era tarde da noite, e uma chuva de gotas densas caía. Elas explodiam no meu para-brisa, mas em um segundo eram eliminadas pelo limpador, que se mexia desesperadamente, como se fosse uma moça obcecada por limpeza correndo atrás de seus filhos e suas lambanças.
Eu seguia meu caminho, movido pelo silêncio da tempestade caindo sobre a lataria do carro. Perdida em meus pensamentos, poderia ter perdido aquela cena. Mas, alguma força invisível fez com que eu olhasse para a minha direita, logo após fazer uma curva. Curva essa que, aliás, faz parte do meu caminho diário, e na qual nunca havia notado nada.
Naquela noite, sob a tempestade, estavam enfileiradas na calçada dezenas de barracas de acampamento. Encharcadas, a lona sacudindo violentamente ao ritmo da ventania, eram barracas de várias cores e modelos que se assemelhavam a pirâmides irregulares e frágeis, como um Egito às avessas.
O que estariam fazendo ali, além de comunhar a triste solidão de uma noite urbana e gélida? Talvez estivessem à venda ingressos para algum desses shows que fazem as pré-adolescentes chorarem e gritarem, foi o que pensei. Abri mais o meu olhar para o cenário ao redor, buscando mais pistas para desvendar tal intrigante mistério. Vi um muro. Um muro alto. Acima dele, um arame enrolado com pontas, como mil lanças ameaçando para todos os lados. Mais acima, uma torre. Uma guarita com grades e vidros escuros. 
Enquanto eu pensava nisso, o cenário já havia deixado a janela do meu carro, mas continuava aceso em mim. Lá dentro, então, estavam os supostos criminosos, os pecadores, os deturpadores, os corrompedores... É o que se diz. E, fora, estavam aqueles que eram inexoravelmente condenados. Impiedosamente, um carrasco chamado cupido cravou em seus corações a flechada imperdoável da eternidade, que leva as pobres almas atingidas a prepararem os pratos favoritos de alguém e a dormirem sob o manto molhado da noite apenas para poder vê-los sendo saboreados pela boca amada.
Naquelas pequenas pirâmides de pano dormiam os verdadeiros prisioneiros, cujo crime principal poderia ser considerado passional e doloso. Sem atenuantes. Seu delito estava impresso nas portas daquelas barracas molhadas, estava iluminado pelo holofote do farol do meu carro ao passar por eles, estava gravado nos muros altos e protegido por mil lanças. Se dentro estavam confinados aqueles que foram julgados culpados, fora estavam os que pegaram um pouco da culpa para si, misturaram com farinha, lágrimas, um pouco de açúcar e perdão, e transformaram-na em bolo de fubá.

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Imagem retirada daqui.

24 de junho de 2012

Cinco anos e meio





Lembro da escada irregular que eu subia, e que era cercada por um matagal disforme, invasivo, que exalava um odor úmido que me dava vontade de fazer inspirações que durassem a eternidade. 
Eu caminhava à frente. Quatro pézinhos de pequenos passos incertos seguiam-me. Meus sapatos tinham pequenas lâmpadas à sola, que piscavam luzes vermelhas no contato com a terra. Eram os sapatos que guiavam quem vinha atrás de mim, pois me dotavam de um certo poder de não só ter meus passos anunciados, como de controlar exatamente o efeito que eles produziam sobre o solo.
Eu olhava para cima, e via que aquela escada não tinha fim. Por um momento imaginava que, talvez, eu permaneceria ali para sempre. Deveria ter me despedido dos meus pais. Eu nunca mais voltaria a vê-los, pois eu tinha a grande missão de subir uma escada infinita e, além disso, tinha a responsabilidade de cuidar dos dois pequenos que me acompanhavam, na crença de que eu sabia o que estávamos fazendo. Eu não queria assustá-los, era melhor guardar toda a verdade para mim: eu não sabia para onde estávamos indo, ou se conseguiríamos voltar.
Pensei em nunca mais tomar o sorvete derretido com chocolate da casa da minha avó e por um segundo tive vontade de chorar. Passou rápido quando olhei para cima - tática infalível -, e os meus olhos encontraram a copa das árvores que gentilmente deixavam passar feixes de luz solar que tocavam de leve a minha pele e secavam meus olhos.
Pior seria se a escada tivesse um fim. Que mil perigos e mistérios poderiam ter lá, no topo? Talvez a casa de um gigante que jamais nos deixaria voltar. Talvez ele nos prendesse em uma gaiola, e teríamos que pensar em táticas para que ele não visse que estávamos gordinhos e saudáveis (prato para uma boa refeição de gigante). Talvez houvesse uma cidade de piratas e bandidos, que nos obrigassem a vestir roupas sujas e a viver com eles para sempre. Talvez uma bruxa má com uma maçã ou um dragão cuspidor de fogo. 
Diante de tantos perigos não foi o medo, mas um espírito de aventura que se apossou de mim. Como se minha subida ganhasse uma trilha sonora de animados sons de trompete e tambores, enchi-me com toda a coragem que eu nem sabia possuir. Voltei-me para aqueles novinhos atrás de mim, me olhavam de baixo para cima com um meio sorriso e com um ar de admiração que me tornou mais poderosa do que mil gigantes.
Ainda subindo, vi que a escada se aproximava de seu final. Pronto. Ela realmente tinha um fim.
Mas agora eu não era mais tão pequenininha, nem tão chorosa: o sol secou minhas lágrimas covardes e eu tinha duas almas para salvar dos perigos do mundo.
Ouvi o ruído seco do meu tênis pisar pesado no último degrau. Finquei meus pés na terra como se hasteasse uma bandeira no topo de uma montanha. Eles chegaram um pouco depois de mim, e nós três ficamos parados olhando ao redor. 
Era incrível como a minha coragem, de tão grande, tinha espantado todos os gigantes, bruxas e piratas que viviam ali. Só havia restado o canto dos pássaros e folhas secas que rodopiavam pelo chão.
E, nessas conversas em silêncio das crianças, gargalhamos juntos, e descemos. Para poder subir mais uma vez.

22 de maio de 2012

Adolescer (ou A dor de ser)




Os cabelos meio desgrenhados, numa dúvida se presos ou soltos. A impaciência que reflete a pressa de quem não sabe muito bem sobre o amanhã.
A maquiagem feita pela metade, que mamãe odeia, mas que é ao mesmo tempo igual a que ela usa. Mas isso não é coisa que se diga.
Os dedos das mãos sujos de caneta, os recadinhos dos amigos que marcam a pele e ajudam a fazer essa solidão errante não entrar pela pele.
A roupa não encaixa mais no corpo. Algo sobra, algo falta. Parece um pouco com esse sentimento aqui dentro, algo que às vezes as músicas que ouço preenchem, e que também escapa de mim quando bato portas. Aumento o volume, e assim aquieto meu turbilhão incessante.
Qualquer coisa, menos todos os outros. Menos aquilo que já existe. Menos aquilo que já conheci. Qualquer coisa, desde que seja nada disso.
Esse novo amigo estranho, o desejo. Sujeito estranho, parece que veio para ficar, e não sei muito bem onde fica o quarto para hospedá-lo.
Casaco de gorro, mãos nos bolsos. Amores de verão e todas as outras estações.
Um sono sem fim, cansaço dessa difícil missão de tornar-se. Correr às cegas, num labirinto de espinhos e labaredas.
Meu nome guardado nas carteiras da escola, só para ter certeza que eu deixo marcas. O espelho mostra um rosto desconhecido.
Sorriso tímido de canto de boca, como quem não tem muita certeza se deve. Revistas que ensinam a beijar.
Uma bomba relógio no último segundo bem no meio do peito. Hora é paixão, hora é medo.
E a vontade louca de saber se o fim do mundo é mesmo na linha do horizonte.

23 de abril de 2012

Pintando o Sete


Foram sete dias para construir o mundo, contando com o dia do descanso, que acabaram se eternizando nos sete dias da semana, que se repetem nas vidas de todos ano após ano. Embora se tornem pouco memoráveis, afinal são poucos os que se lembram se aquilo aconteceu numa quarta ou quinta-feira, os dias da semana organizam nossas rotinas em gavetinhas para que, talvez, tenhamos a liberdade de fazer pequenas bagunças inesquecíveis, como sair para comer esfiha numa terça-feira à noite, ou ir ao cinema numa quinta à tarde, só como desculpa para ficarmos sozinhos.
São sete maravilhas esculpidas pelos ventos, pelos (sete) mares ou por mãos humanas ao longo dos milênios. Mãos que poucas vezes foram reconhecidas por seu trabalho como deveriam, mas que deixaram um legado a todos os filhos deste pequeno planeta. Foram sete sábios da antiguidade, que com certeza cometeram alguns ou todos os sete pecados capitais, e talvez por isso eles tenham sido inventados. Dizem por aí que os sete pecados podem até mesmo caber em uma única caixa!
São sete as vidas que os gatos têm para usufruir, e quanto a nós... Não sei. Sei que esta tem valido muito a pena.
O arco-íris colore o céu depois da chuva com sete cores diferentes e, para surpresa de qualquer designer, o aparecimento de um arco-íris e suas simples sete cores chamam a atenção e os sorrisos de qualquer criança ou ancião, atraem dedinhos surpresos em riste que apontam animadamente. 
Os homens tentaram se aproximar de tal perfeição, e foram capazes de criar sete formas de fazer arte. Numa delas, sete notas musicais são misturadas em diferentes combinações e repetições, que muitas vezes causam arrepios nos pelinhos braços e fazem pensar em momentos já vividos. Mas, na verdade, acho que a única arte que consigo usar com certa liberdade é essa daqui, de dar corpo às ideias e sentimentos usando as palavras que guardei ao longo da vida. Muitas delas tenho dedicado à você, espero que isso não esteja se tornando um pouco chato. Se quiser, posso aprender a usar alguma das seis artes que restam, só para variar um pouco. Mas acho difícil que um dia eu atinja o ideal de expressar em detalhes a perfeição do arco-íris que mora em meu peito quando o assunto é você.
Hoje é dia dos sete anos. Sete anos nossos, sete anos em que há um "nós". Sete anos que levamos para construir o que somos e quem nos tornamos hoje.
Sete anos em que meus sonhos ganham mais um protagonista, e que os seus sonhos passam a fazer parte dos meus planos também. Tanto tempo, é o que todos dizem. 
Acho que eles têm razão, é muito tempo. Sete anos em que escolhi estar com você, dia após dia, sem hesitações ou arrependimentos. 
Sete anos é muito tempo, tempo suficiente para  se conseguir ser feliz como muitos tentam por uma vida inteira. Como já fui com você até hoje, como continuarei sendo a cada dia em que escolhermos continuar sendo um "nós".

30 de março de 2012

Mensagem 9

E então um dia eu tive a sorte de cruzar o meu caminho e meus abraços com esse rapaz. E, desde então, aprendi que não importa tanto assim que a gente seja diferente. Porque, no fundo, nós pulsamos no mesmo compasso, e vai ver que foi por isso que foi por isso que só com ele ele eu aprendi a dizer que amo com tanta verdade, que chega a arder o coração.
Passaram-se alguns anos entre a gente, e aí não teve como, aprendemos a ser gente grande. É duro, é sofrido, é bem triste às vezes. Mas tivemos um ao lado do outro. E daí, por algum motivo, o colo dele é capaz de deixar o mundo mais suave, fazer com que o sofrimento escorra devagarzinho. Daqui a pouco, as lágrimas secam e as suas palavras fazem com que eu não tenha mais medo.
Com ele a minha risada também é fácil e boba, e algumas vezes até incontrolável. Chega a dar soluço, por mais que ele ache isso meio estranho.
E de vez em quando minhas mãos ainda tremem um pouquinho quando vejo ele, mesmo depois de todos esses anos. Borboletas no estômago, pernas bambas, bochechas vermelhas. É engraçado, mas ainda acontece, e às vezes fico pensando que nunca vai parar.
E aí, quando tento traduzir isso e tudo mais em palavras, sobra um "Eu te amo", que parece tão pequenininho, não parece?

Acho que para nós é muito mais.

10 de fevereiro de 2012

A questão da escova de dentes




Atualmente estou  morando em uma casa que contém apenas o básico para que uma pessoa viva confortavelmente. É uma situação provisória, enquanto minha vida se ajeita em certos eixos. Tenho alguns eletrodomésticos, como geladeira e fogão, minha cozinha está equipada com um talher de cada tipo, uma panela e dois pratos. Conto com uma cama confortável, algumas poucas roupas, itens de higiene pessoal e o meu computador. E, desde ontem, estou sem televisão.
Aqui na minha casa, em geral, reina o silêncio. Fico só, apenas eu e minha própria sombra, perambulando pelos quartos vazios e pela sala pouco mobiliada. No entanto, apesar da aparente simplicidade, devo dizer que essa vem sendo uma experiência de valor inestimável para mim.
Lembro-me de uma vez, há alguns meses, em que fui escovar os dentes no toillete de um restaurante de um hotel junto a uma grande amiga. Chegando lá, verificamos que todas as pias estavam ocupadas. Nós estávamos com pressa, então já retiramos as escovas da bolsa, e preparamo-las com a pasta de dentes. Eu permaneci imóvel, aguardando pela liberação de uma pia para que eu pudesse umedecer a minha escova. Notei, então, que a minha amiga não pensou duas vezes e logo começou a escovar seus dentes lá mesmo. Provavelmente, eu a encarei com o mesmo estranhamento com que ela me olhou, ao perceber que eu permanecia estática, com a escova parada nos dedos. Eu nunca havia sequer cogitado a possibilidade de escovar os dentes sem molhar a escova antes. A ordem das coisas para mim deveria ser escova-pasta-água-boca, sem questionamentos ou indagações. Mas em um segundo meu pequeno mundinho Tandy foi por água abaixo, e com um simples olhar minha amiga apontou para o meu pequeno-grande paradigma. 
No fim das contas, naquele dia descobri que não havia apenas uma ordem ou regra. Aprendi que escovar os dentes sem molhar a escova dava um desconforto de meio segundo, mas depois todo o processo parecia exatamente igual.
No meu atual acampamento (como apelidei carinhosamente minha casa), todos os dias em algum momento sou tomada por essa sensação de não aguar a escova. É quase como colocar uma luz repentina em um canto de uma sala, e então descobrir que o que você antes achava ser parede, era uma janela.
Dia desses fui ao mercado, e comprei um pé de alface para enfeitar o meu sanduíche. Ao abri-lo, por pouco não estraguei violentamente o plástico que o protegia. Pude conter-me quando lembrei que não havia nenhum recipiente para armazená-lo, e que se eu quisesse voltar a comer alface nos outros dias, deveria desembalá-lo carinhosamente, sem romper a embalagem.
São fatos pequenos, eu sei. Mas assim, com tão pouco, descobri que não preciso de muitas coisas para viver. Talvez até pudesse abrir mão do micro-ondas, que não utilizo há mais de uma semana. 
Compro pouco, e sempre aquilo que com certeza irei consumir. Sem neuroses ou dificuldades, descobri dezenas de formas diferentes de não gastar tanta água ou luz. Como nenhum canal de televisão está funcionando, já tive oportunidade de assistir a ótimos filmes que estavam na fila de espera há meses. Organizei minhas finanças, minhas metas de ano novo, tive um tempo incrível para ficar comigo mesma. Não consigo mais levar uma louça à cozinha sem lavá-la imediatamente.
Faz quase dois meses que o lugar em que moro mudou completamente, e talvez alguns o descreveriam como solitário e triste. Eu, contudo, ainda acho incrível como esse novo lugar cheio de vazios abriu em mim novos espaços.
E, de verdade, poucas vezes fui tão feliz.

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