20 de dezembro de 2010

Minguante

Lua, lua
cante comigo esta canção
com o timbre do silêncio.

Ainda bem que tenho a ti,
que me lembra de tudo aquilo
que não está.
O Sol já se foi.

Lua, lua
E eu agora sou satélite.
Giro ao redor,
busco no seu brilho frio
o calor que me esvazia.
O Sol já se foi.

Lua cheia.
Eu minguante.

Lua, lua
Irradia uma luz roubada
na calada da noite.
Calada.
Eu sou sua.
Eu sou lua.

Lua, lua
somos duas.
Solitário brilho azul
ninando os sonhos do mundo.

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Elaborada mentalmente numa vez em que estava longe de tudo e todos que amava, e saía sorrateira à noite para estar acompanhada da minha única conhecida: a Lua.

14 de setembro de 2010

Salvem as flores

Protejam a flor.
Não importa mais nada,
protejam a flor.

Porque ela,
e só ela,
sabe ser flor.
Na profundidade do simples
existir.

Imune a tudo.
Tão escancarada
que chega a ser frágil.

Suas pétalas rosadas
brotaram, uma a uma,
conhecendo a pureza do ser.
Não pediram desculpas,
não regozijaram-se.
Elas eram pétalas.

A flor resistiu ao outono,
ainda que vazia,
porque sabia voltar.
Conhece caminhos
que nós,
estúpidos filósofos,
largamos nos livros.

Toda flor é última,
ainda que eterna.

23 de julho de 2010

Imperfeições

Naquela casa vivia alguém cansado das rachaduras na fachada. Ficou inconformado, pois percebeu que tudo aquilo que é rígido demais não resistia à mínima flexibilidade, e se quebrava. 'Devemos ser perfeitamente brancos', era o que sempre dizia.
Resolveu, portanto, contratar um rapaz, que chegou vestindo seu boné e carregando suas ferramentas. Calça rota, camiseta que notadamente não estava sendo usada pela primeira vez. Eram cicatrizes que denunciavam: pingos de tinta, falta de cores, pés grandes e grossos, mãos fortes e unhas com marcas de seus esforços. Apresentou-se como homem especializado em pedras.
O sotaque era do lugar de onde todos eles nascem. A fala um tanto quanto indecifrável, mas não importa, pois naquela casa havia alguém apenas cansado de rachaduras. Sem grandes ambições de fazer novos amigos, apenas contratos que acabassem com rachaduras.
Eles conversam apenas sobre rejuntes, espátulas, tijolos. E o que mais seria possível?
Aquela pessoa queixa-se das rachaduras, aponta uma a uma com pesar e raiva. Reclama da mobilidade da terra que sustenta suas paredes, e diz que seria melhor se o mundo todo fosse cimentado, imóvel e rígido. O homem que lida com pedras não entende, mas por algum motivo sente-se culpado pelas rachaduras.
Finalmente ele fica a sós com elas para fazer seu trabalho. Não as odeia, mas foi chamado para retirá-las dali. Monta sua escada, prepara seus instrumentos. Para consertá-las, primeiro é necessário despí-las ainda mais, penetrar nas reentrâncias daquela parede sem destruí-la.
Ele inicia suas marretadas, que para o leigo (que não sabe lidar com pedras) parecem violentas e ao acaso. Mas o especialista sabe exatamente o porquê de cada batida. As batidas têm um ritmo, ritmo de uma música que toca em silêncio, dentro dos ouvidos do batedor.
Seus lábios se movimentam. As palavras daquela canção precisam ser libertadas, as batidas as empurram para fora. As rimas montam-se quase sem querer, cada verso da música marcado por um estrondo seco na parede.
O rapaz era especialista em pedras, não em música, mas timidamente seus lábios cantarolam uma canção em um idioma de algum país mais ao norte. Logo se vê que o homem também não era especialista em línguas estrangeiras, mas...
Seu martelo marca o ritmo de sua canção, e ele então entra numa espécie de mistura. Não se sabe mais o que ali era pedra, parede, martelo, especialista, música. Tudo se funde, transforma-se numa bela orquestra regida por uma presença invisível. A voz que brota daquela garganta ganha corpo, penetra nas imperfeições daquela parede, como que consolando-as por seu triste fim. O martelo é levado pelas notas musicais.
O rapaz não pensou, mas se eu estivesse no lugar dele pensaria: "De onde vem essa voz que sai de minha boca?". Não era nem mesmo uma voz de rapaz, muito menos de um rapaz especialista em pedras. Aquela música, que toca em rádios que melam os dedos de tão românticas, embora assustadoramente igual à original, está completamente diferente. Tem uma moldura feita por espátulas e mãos calejadas. Os acordes são definidos pelo ruído seco da obra. E a métrica... ah, tão livre! De quantas cores aquela fachada foi colorida além do rigoroso branco!
Essa bela sonoridade passeava junto com o vento, espetáculo sem plateia. As pessoas eram surdas, eis o grande porém. Passantes, neste local, apenas passam. Não ouvem, não veem. Os passantes decerto acharam que um especialista em pedras jamais poderia musicar: ele apenas tapava rachaduras. E então, com a deficiência fundamental do excesso de categorias, ninguém ouviu nem viu nada.
Passaram-se horas de um belo concerto (com 'c'), tarefa realizada. O especialista guardou seus instrumentos.
Olhou para sua fachada, reconstruída. Ficou pensando em como agora ela está exatamente igual a todas as outras fachadas, deu um profundo suspiro. Olhou ao redor, não havia ninguém. Saiu de lá sem dizer nada.



25 de abril de 2010

E então...

E então, sou eu, tão mil.

Um milhão de facetas recobertas por um par de olhos claros que me acompanham desde que nasci. Talvez só os olhos permaneçam os mesmos.
Acho que já não sou mais a mesma, acho que hoje sou um milhão.

Dentre todas elas, e são muitas, eu não posso escolher entre uma só. Eu sou várias, que mudam conforme a minha cartela de anticoncepcional, conforme o jeito como prendo meus cabelos, o cenário que envolve minhas ações, as pessoas que me rodeiam.
E quando escolho ser a heroína para um, sei que instantaneamente me tornarei a vilã de um outro.

15 de março de 2010

A mulher e a abelha

Num dia de um sol cansado, um sol urbano que já nem brilha, apenas descasca, lá estava ela, tão diferente de tudo. A pessoas que passavam na rua estavam todas vestidas de tédio: saias cinzas e paletós marrons. Tinham os músculos da face tão contraídos, tão marcados, que me lembravam troncos de uma árvore bem velha, dessas que morrem e caem sobre carros.
Mas ela não. Ela era como um botão de flor: tinha traços tão delicados que chegava a dar pena.
O cabelo curto, totalmente branco, fazia uma moldura redonda, envolvia sua face em madeixas lisas bem penteadas. No rosto repousavam olhos suaves, que não estavam alheios a nada e buscavam o tempo todo por um motivo para sorrir. Quando os vi, pensei em borboletas.
A pele era alva como uma tela. Minha memória pode estar me enganando, mas não me lembro de haver rugas em sua face. Sua boca, pequena e rosada, parecia ser o lar da gentileza.
Ela era o contrário do mundo. Parecia ser a única em meio a tanta gente que, de fato, via o sol. Ele parecia querer brilhar só para ela, também.
Sentou-se no único lugar em que a luz do sol não estava coberta por construções, telhados e metais. Ficou ela observando a tudo em seu cantinho iluminado, enquanto o mundo marrom seguia com pressa.
Ela vestia vermelho. Vermelho vivo, sem vergonha, sem vaidade. Um vermelho, assim, orgulhoso.
Acho que só eu e ela vimos o momento em que uma abelha, que há muito circulava por ali, pousou exatamente sobre o dorso de uma das suas mãos, que estava apoiada suavemente sobre as pernas.
Imediatamente o olhar sapeca da mulher voltou-se para abelha, mas não com aquela habitual pressa angustiada de afastar resíduos de natureza. Ela olhou-a como quem, plácida, aprecia uma conhecida que se aproxima.
A abelha correspondeu à calmaria, e lentamente passou a caminhar sobre mão magra e gentil da doce senhora. Passeou sobre a palma alva, sobre o dorso carregado de sardinhas, explorou os dedos suaves, as juntas levemente inchadas. E a mulher simplesmente olhava e abria os dedos, dando mais espaço para a pequena explorar.
A abelha parecia ter encontrado um bom lugar para descansar depois de um exaustivo dia de trabalho, e mulher a observava com uns olhos de admiração. E eu entendi o quanto ela estava orgulhosa por ter sido escolhida como repouso daquele ser tão perfeito em sua pequenez.
Agora ela sorria abertamente, e trazia a abelha para bem perto dos olhos. Enquanto a abelha andava em uma das mãos, com a ponta de um dedo da outra a mulher começou a acariciá-la. Fiquei admirada quando vi que a abelha não assustou-se com as carícias, e ficou ali, parada.
E a curiosidade tomou conta de mim quando vi que, naquele instante, a mulher passou a sussurrar algo para a abelha. Ela sorria e falava baixinho algo que eu daria o universo para poder ouvir.
Pensei que eu não teria nada para dizer a uma abelha que distraidamente pousasse sobre uma das minhas mãos, e me senti muito estúpida por isso.
A senhora de vermelho parecia tão envolvida com aquelas palavras, e elas escorregavam tão suavemente de sua boca que cheguei a sentir inveja. Alguma vez na vida minhas palavras flutuaram tão suavemente quanto as daquela mulher?
Meu ônibus se aproximava, e eu tive que desligar-me daquele mundo que era feito de vermelho, abelhas e palavras aladas. O ruído de freio, a porta que se abriu bruscamente diante de mim. Eu ainda encantada, e o motorista que me olhava impaciente, enquanto eu, indecisa, não sabia se subia os degraus ou se continuava olhando para a senhora de cabelos grisalhos.
Lembrei-me de que eu tinha pressa. Em casa me esperavam coisas. Coisas a fazer. Não sei bem o que eram.
Cortei o fio que me ligava a ela, e com um certo pezar subi a escada do ônibus. A porta se fechou num tranco. O motor velho roncou, o motorista mal-humorado bufou.
Olhei pela janela, e ainda a vi por mais alguns segundos. Agora ela me olhava, e talvez até a abelha me olhasse também. Ambas sorriram.
Eu parti.