6 de setembro de 2013

Sê inteiro



Certa vez, alguém com amor à poesia teve a brilhante ideia de estampar algum dos tesouros do nosso idioma nas paredes de concreto da nossa metrópole cinzenta. Por sorte, era alguém que conhecia as pessoas certas.
Seu projeto pulou do papel para as paredes do metrô da cidade com vida subterrânea mais ativa do país. Os poemas, sonetos, versos, trovas, antes enclausurados nas páginas de um livro, despiram-se de suas capas e exibiram-se sem um pingo de vergonha. Estavam, às centenas, acompanhando meus passos no metrô. Como toda boa poesia, trazendo aquela sensação que começa pela incompreensão e termina com um arrepio que atravessa o corpo todo e termina nos maxilares.
O poema que mais encontrei, no entanto, foi um de Pessoa (sempre ele), que todos os dias me fitava na estação que ficava ao final do meu caminho diário de volta para casa.
Pessoa, travestido de Ricardo Reis, me dizia todos os dias:

"Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive."


Letras brancas adesivadas, coladas no muro acimentado ao redor da escada rolante. Eu contornava o muro enquanto lia o poema, e na descida da escada rolante suas palavras ecoavam em mim. E assim o ritual se repetia dia após dia. Já sabia que eu deveria entrar no metrô no segundo vagão, para então poder sair pela quarta porta e, quando a mesma se abria, eu estava frente a frente com meu amigo português me aconselhando sempre da mesma forma.
Dizia-me sempre as mesmas coisas. Mas, cada vez em que as lia, a compreensão se apoderava de mim por caminhos distintos.
Em mais um fim de tarde urbano, saio novamente pela quarta porta do segundo vagão, encontro com o muro, mas onde estão meus conselhos? As letras brancas não estavam mais lá.
Aproximei-me. Passos incertos e tímidos, certamente algo destoante das pernas apressadas dos meus colegas de trem. Paro de frente a meu mural, e um laço ardido fecha minha garganta. Deixo meus dedos passearem pelas marcas da cola invisível, restos do que antes enchia de lirismo meu fim de tarde.
O laço foi engolido, e a tristeza desceu a escada rolante comigo. A sombra da cola, contra a luz, fazia com que as palavras ainda se tornassem legíveis. Tentando ser otimista, pensei que pelo menos agora eu as havia de-cora-do.
E qual não foi a minha surpresa quando acompanhei, dia após dia, a cidade se deixando enfeitiçar pelas palavras de Pessoa, tal qual aconteceu em meu coração. Os restos de cola das letras chamavam para si a poeira urbana, e as letras transparentes foram se tornando progressivamente mais visíveis. Por poeira urbana entenda aquele cinza que vem dos carros, fábricas, asfaltos e concretos, e acaba espalhado por todos os lados, a não ser que se limpe com água e sabão.
Com as palavras de um português multifacetado não se brinca, e nem se passa água e sabão. E a lua, palavra grudada na parede, tornou-se grande, tatuada como uma cicatriz cinzenta que deseja se fazer eterna.
E ainda que a tirem, a diminuam, a invisibilizem, lá está ela. Lá estão todas elas, em um só verso, a marca do lirismo, que a cidade até poderia exterminar. Mas rende-se.

15 de agosto de 2013

As lembranças que ficam



Não preciso de nenhum esforço para puxar o fio da memória, e como que tecendo uma carreira de crochet, uma lembrança engata na outra, e no intervalo de um piscar de olhos as mais deliciosas histórias vão colorindo meus pensamentos. Imagens, sons, perfumes, sabores e texturas bailam por minhas lembranças formando uma ópera regida com a maestria que só a infância sabe dar.
O gosto da massa crua do bolo de chocolate e o barulho da colher raspando a tigela me trazem o tilintar da coleção de moedas, que ficava dentro do pote de sorvete. Brincar de cavalgar no braço do sofá, me faz lembrar da guerra de canetinhas enquanto eu fazia a lição. Então, passam algumas histórias, e percebo que em quase todas elas, lá está você.
O cheirinho de arroz e feijão quando eu chegava da escola. Ficar olhando pela varanda a chuva transformar a rua de baixo em uma cachoeira. Rua essa, aliás, que tinha os mais altos penhascos, que eu pulava um a um, e você pacientemente (hoje sei) me parabenizava por cada um dos meus grandes saltos. Se havia tombos, o mercúrio vermelho era cuidadosamente colocado sobre a ferida, com soprinhos gentis entre uma gota e outra. Se ainda assim doía, seu abraço acolhia meu choro sentido.
O silêncio que havia na Igreja enquanto eu te esperava, e caminhava me equilibrando pé ante pé no apoio para joelhos, até andar todos os bancos, num ansioso aguardo pelo churros de doce de leite. Até hoje é meu doce predileto.
Os pequenos pedacinhos de linha e lã que infestavam o chão do quartinho de costura, colorindo-o. O barulho da máquina trabalhando a todo vapor enquanto você fazia as fantasias de apresentação de final de ano da minha escola. As centenas de formiguinhas que passeavam no tapete da sala - eu juro que elas estavam lá, mas sumiam quando você as procurava.
Comer as amoras no pé, até a ponta dos dedos e a língua ficarem vermelhas. Esquentar o sorvete no micro-ondas, misturar a calda de chocolate e sentar para assistir televisão. As almofadas enormes que cobriam a cama, e que formavam uma ótima cabana quando eu precisava me esconder.
O sono depois do almoço, e todas as vezes que acordei antes só para ficar mexendo no seu cabelo enquanto você dormia. Aquela fome que me dava à tardinha, e que só passava se eu repetisse o almoço.
As longas negociações para ir à aula de natação. As longas redações para a escola. As longas conversas que você tinha com suas amigas no sofá. 
O cesto de roupa suja, de vime branco, e o triste dia em que descobri que eu não cabia mais dentro dele. A gaveta das suas maquiagens e escovas de cabelo. A caixinha de música. A Bíblia. O espelho com moldura de metal que, para mim, parecia ter saído de alguma dessas histórias de princesas.
O barulho da dobradiça da porta de vidro da estante da sala, o vento forte que batia derrubando, e às vezes quebrando, os porta-retratos que ficavam sobre ela. O cheiro doce do armário onde ficavam o pote de pão de mel e a caixa de bombons. 
O aroma do seu café. O dia em que aprendi a fazer seu café. A prender botão. A dar o ponto atrás. A segurar na agulha de crochet. A ir sozinha até a padaria. A atravessar a rua. A andar de ônibus. A guardar os pratos. A escolher a lã para a tapeçaria. A jogar buraco. E tantas mais outras coisas que aprendi, justamente as mais valiosas, mas que são grandes demais para caber no curto espaço da palavras. 
Foi com você que aprendi que não há nada tão libertador quanto a constância de um amor transmitido em gestos. São atos que duram um átimo, mas acabam guardados a sete chaves na gaveta mais sagrada da vida do ser amado e, como que por mágica, lembranças se transmutam em relíquias eternas. Vinte anos depois, o gosto do seu arroz com feijão, os saltos na calçada e todas as outras histórias são como um píer seguro para o qual aporto todos os dias da minha vida, e assim posso, destemida, continuar a navegar oceano adentro.

Obrigada por me dar minhas melhores memórias.

14 de junho de 2013

Criador de monstros em moinhos de vento





Queria poder escrever algo que, de fato, falasse por mim. Algo que imprimisse no papel o que eu venho tentando há tanto tempo, desde que me lembro escrever.
Eis aqui o paradoxo do escritor: no fundo, ele se sente um homem mal compreendido. E a responsabilidade não é dos outros por portarem algum tipo de incompetência compreensiva, mas do Próprio, pela inabilidade expressiva. 
A minha teoria é de que a minha perseverança incansável na escrita reside justamente na minha incapacidade de falar usando menos. O pouco com o qual todos os felizes não-escreventes se contentam, o pouco que precisa só de duas ou três linhas para contar satisfatoriamente como foi o dia.
O que para mim é miséria, para a maioria é abundância e ponto. Resta-me essa fome às avessas, porque o desejo pela letra é tão voraz quanto o do estômago, mas a diferença é que as palavras não são engolidas, mas precisam deslizar, escapar, e assim são despejadas de dentro mim. Às vezes cuidadosamente, é verdade, numa cautela quase matemática. Mas às vezes é numa única golfada, desmedida e emocionada.
Não importa como se dá esse escape, cada texto escrito é um alívio parcial e temporário para esse esvaziamento persistente que renasce, forte, quando menos se espera.
O escritor é um bandeirante solitário. Desbrava a linguagem, essa floresta enorme e multifacetada e, dentro dela, quer encontrar seu próprio dialeto. Para ele não bastam as trilhas já sistematizadas e as frases já ditas. Ele sente que pode (e deve) dizer algo que somente ele é capaz, e abraça essa tarefa como uma missão. Frequentemente, ele não sabe por onde começar e passa a vida tentando. Sorte de quem o lê.





29 de maio de 2013

Sagrados



Acredito no que meus olhos vêem.
No que a boca beija e saboreia.
Os perfumes que preenchem meus pulmões
despertam minha mais profunda fé.
E as texturas que percorrem a pele,
e os sons que musicam em meus ouvidos.

Vejo, ouço... sinto.
Isso é crer?

Tudo que está além dos meus sentidos,
pouco me interessa.
Nos meus sentidos moram todos os mistérios,
e gastarei a vida a desvendá-los.
Prazerosamente, um a um.

E, se um dia, provarem-se errados
os canais que me conectam ao mundo,
morrerei sorrindo e direi:
Ao menos, vivi!


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Brincando de ser Caeiro. Espero que ele não se revire na tumba.

8 de maio de 2013

No ônibus







Eram duas mulheres no ônibus. As duas mulatas, de alguma idade indefinível, algo entre 20 e 40. A primeira, magra e com os olhos fundos, vestindo uma saia marrom até o tornozelo e uma blusa azul com os dizeres "Jesus me ama". Cabelo liso, castanho, preso num despretensioso rabo de cavalo baixo. A segunda, um pouco mais gordinha, com o rosto redondo e risonho, o cabelo crespo e curto, mas também preso. Sua saia bege caía até o chão e uma camiseta branca cobria os seios fartos.
E o menino. Filho da primeira, uns três anos, uns olhinhos vivos e bochechas sobressalentes que davam a ele um ar risonho. Comia um salgadinho fedido e, alheio à conversa das duas, olhava pela janela.
O meu registro começa com uma fala da de blusa azul:
- Porque o pastor, com a graça das palavras de Cristo, disse que não cabe a nós julgar.
- É, não há porque julgar.
- Jesus não julgava ninguém!
- É o milagre de Deus na terra!
- Jesus era mais do que um milagre.
- Muito mais! Jesus era tudo!
- Ele não era, é!
- Ele era, é, e sempre será!
- Sempre será!
- Graças a Deus!
- Graças a Deus!
Divertia-me com a discreta disputa das duas para saber quem louvava mais, numa dialética cuja síntese era sempre concordar na fé. Foi quando o pequeno interrompeu-as:
- Mamãe! Mamãe! Olha mamãe! Um fuca! Um fuca!
O ônibus estava parado no semáforo, ao lado de um fusca amarelo-colonial. Até hoje me impressiono como esse modelo automobilístico ganhou um quê mitológico, atraindo olhares das mais variadas gerações de crianças, quase como contos de fadas  O menino apontava para o carro e gritava seu nome repetidas vezes, com a boca e os dedos melecados de salgadinho colados na janela, os olhos brilhando de fascinação autêntica, como se aquele fosse um espécime raríssimo.
O diálogo sagrado das duas por um instante foi quebrado. Disseram algumas palavras de aceitação, apenas para corresponder ao entusiasmo do menino, mas logo voltaram ao assunto anterior. O menino calou-se quando o sinal abriu. Seus olhinhos acompanharam o fusca até que ele se perdesse em meio aos outros carros.
A segunda, da saia bege e rosto redondo, foi quem retomou a conversa.
- Esse mundo está cheio de gente perdida, de mulheres sem pudor, homens que só pensam nos prazeres da carne, gente drogada, viciada, perdida na vida. Falta Deus no coração dos Homens!
- Deus, que nos deixou palavras tão bonitas, e nos deu a vida, e nos deu tudo que nós temos.
- Todo dia dou graças a Deus por tudo que Ele me deu!
- Deus abençoou tanto a minha vida!
- A minha também. E dou graças a Deus ao dia em que conheci o pastor!
- Homem santo! Antes de frequentar o culto eu era uma perdida, graças a Deus hoje em dia estou mudada.Tenho tudo, nada me falta.
- E eu, então? Conquistei tudo de bom da minha vida, me tornei uma pessoa de Deus! E Deus só me deu coisas boas!
- Graças a Deus!
- Graças a Deus, nosso Senhor!
Enquanto as duas, ainda falando, já se levantavam para descer do ônibus, o menino retomou seu chamado, agora olhando firmemente para a mãe:
- Mamãe! Mamãe!
As duas pareceram elevar seu tom de voz. O menino persistiu:
- Mamãe! Mamãe!
Mais uma vez, o menino nada conseguiu. Dessa vez, com um tom de voz infantil que misteriosamente se destaca de todo resto:
- Mamããããããe!
O ônibus parou no ponto. Silêncio. As duas se entreolham. Alguns passageiros voltaram-se em direção à tríade.
- Faltou o fuca!
- Quê?
- Deus deu tudo, mas esqueceu o fuca!
A porta se abriu, e os três desceram.


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Baseado em fatos reais.

8 de janeiro de 2013

Um sonho




Todo sonho é assim, feito de três partes: a massa de baixo, o meio cremoso e a massa de cima, num tipo de paraíso convexo. Ficam lindamente alinhados na vitrine da padaria, em todos os tamanhos.  Há os pequenos, que matam aquela vontadinha rápida de doce; os médios, que enchem a boca por quatro ou cinco mordidas e deixam os dedos melados; e os gigantes, que podem ser comidos por apenas um guloso, ou divididos por toda família.
Os melhores são os quentinhos, fresquinhos. A massa crocante por fora e fofa por dentro, o creme de confeiteiro cor amarelo-bebê, o açúcar espalhado em volta. Quando você termina de comer, lambe os lábios e ainda irá senti-los doces.
Um sonho perfeito é até parecido com o sonho mesmo. Aquele que a gente deseja, não o que a gente dorme.
O sonho-sonho também tem três partes: um antes, um durante e um depois. A primeira, a de baixo, é a mais sem graça se comparada às outras três. Mas se você tivesse só ela, acharia meio bom também. Meio bom, e só. 
A do meio, do durante, é a mais macia e doce. É ela que faz o sonho ser um sonho e não bolinho de chuva ou um delírio. E mesmo que você tenha a sorte de saborear muitos e muitos sonhos, é a camada do meio que faz com que você sempre queira mais um. 
Finalmente, a que vem por cima, do depois, faz com o sonho fique completo, fechado, num sanduíche de perfeição que cabe no espaço da memória.
Assim como o doce de padaria, o sonho também tem tamanhos diferentes, e quanto maior ele é, mais difícil é aguentar um sozinho. Precisamos de outros que apreciem junto, senão ficamos estufados com tanto sonho, ou até tristes por termos um sonho inacabado jogado no lixo.
Se o sonho está velho, esquecido, ele endurece e até mofa. Não dá mais tempo de vivê-lo. Ele azeda.
Talvez, os sonhos-doce perfeitos tenham ganhado esse nome porque foram inspirados em sonhos-desejo perfeitos. Aqueles que surgiram de uma bela expectativa, que quando foram realizados eram ainda melhores do que se pensava, e quando acabaram deixaram uma saudade boa. Então, os sonhos bem vividos poderão ainda ser relembrados, porque seu doce infestou beiços, cabeça, coração. E basta um estalar (ou lamber) de dedos, e aqueles momentos açucarados descerão pela garganta outra vez.

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Um texto sobre a realização de um sonho.