15 de março de 2010

A mulher e a abelha

Num dia de um sol cansado, um sol urbano que já nem brilha, apenas descasca, lá estava ela, tão diferente de tudo. A pessoas que passavam na rua estavam todas vestidas de tédio: saias cinzas e paletós marrons. Tinham os músculos da face tão contraídos, tão marcados, que me lembravam troncos de uma árvore bem velha, dessas que morrem e caem sobre carros.
Mas ela não. Ela era como um botão de flor: tinha traços tão delicados que chegava a dar pena.
O cabelo curto, totalmente branco, fazia uma moldura redonda, envolvia sua face em madeixas lisas bem penteadas. No rosto repousavam olhos suaves, que não estavam alheios a nada e buscavam o tempo todo por um motivo para sorrir. Quando os vi, pensei em borboletas.
A pele era alva como uma tela. Minha memória pode estar me enganando, mas não me lembro de haver rugas em sua face. Sua boca, pequena e rosada, parecia ser o lar da gentileza.
Ela era o contrário do mundo. Parecia ser a única em meio a tanta gente que, de fato, via o sol. Ele parecia querer brilhar só para ela, também.
Sentou-se no único lugar em que a luz do sol não estava coberta por construções, telhados e metais. Ficou ela observando a tudo em seu cantinho iluminado, enquanto o mundo marrom seguia com pressa.
Ela vestia vermelho. Vermelho vivo, sem vergonha, sem vaidade. Um vermelho, assim, orgulhoso.
Acho que só eu e ela vimos o momento em que uma abelha, que há muito circulava por ali, pousou exatamente sobre o dorso de uma das suas mãos, que estava apoiada suavemente sobre as pernas.
Imediatamente o olhar sapeca da mulher voltou-se para abelha, mas não com aquela habitual pressa angustiada de afastar resíduos de natureza. Ela olhou-a como quem, plácida, aprecia uma conhecida que se aproxima.
A abelha correspondeu à calmaria, e lentamente passou a caminhar sobre mão magra e gentil da doce senhora. Passeou sobre a palma alva, sobre o dorso carregado de sardinhas, explorou os dedos suaves, as juntas levemente inchadas. E a mulher simplesmente olhava e abria os dedos, dando mais espaço para a pequena explorar.
A abelha parecia ter encontrado um bom lugar para descansar depois de um exaustivo dia de trabalho, e mulher a observava com uns olhos de admiração. E eu entendi o quanto ela estava orgulhosa por ter sido escolhida como repouso daquele ser tão perfeito em sua pequenez.
Agora ela sorria abertamente, e trazia a abelha para bem perto dos olhos. Enquanto a abelha andava em uma das mãos, com a ponta de um dedo da outra a mulher começou a acariciá-la. Fiquei admirada quando vi que a abelha não assustou-se com as carícias, e ficou ali, parada.
E a curiosidade tomou conta de mim quando vi que, naquele instante, a mulher passou a sussurrar algo para a abelha. Ela sorria e falava baixinho algo que eu daria o universo para poder ouvir.
Pensei que eu não teria nada para dizer a uma abelha que distraidamente pousasse sobre uma das minhas mãos, e me senti muito estúpida por isso.
A senhora de vermelho parecia tão envolvida com aquelas palavras, e elas escorregavam tão suavemente de sua boca que cheguei a sentir inveja. Alguma vez na vida minhas palavras flutuaram tão suavemente quanto as daquela mulher?
Meu ônibus se aproximava, e eu tive que desligar-me daquele mundo que era feito de vermelho, abelhas e palavras aladas. O ruído de freio, a porta que se abriu bruscamente diante de mim. Eu ainda encantada, e o motorista que me olhava impaciente, enquanto eu, indecisa, não sabia se subia os degraus ou se continuava olhando para a senhora de cabelos grisalhos.
Lembrei-me de que eu tinha pressa. Em casa me esperavam coisas. Coisas a fazer. Não sei bem o que eram.
Cortei o fio que me ligava a ela, e com um certo pezar subi a escada do ônibus. A porta se fechou num tranco. O motor velho roncou, o motorista mal-humorado bufou.
Olhei pela janela, e ainda a vi por mais alguns segundos. Agora ela me olhava, e talvez até a abelha me olhasse também. Ambas sorriram.
Eu parti.