8 de setembro de 2016

O amor e a eternidade da amiga.



À Amy: mulher, amiga, eterna. 

Quantas vezes ouço mulheres proferirem como se fosse de grande vantagem que "preferem ter Os amigOs". Por quê? Porque são mais simples, dizem. Ou porque são mais leais, ou porque não competem, porque são mais sinceros, ora, porque neles que confio e acabou-se a história. Reservo a elas o direito de serem como bem entenderem, é claro, mas confesso que tais falas me atravessam como uma flecha em chamas.
Tive e tenho amigos, e os amo. Mas é em defesa das amigas que falo agora, e peço que ninguém se sinta diminuído por isso.
Ora, Eva comeu o fruto proibido e por isso todas as mulheres tiveram que pagar o pato: não-confiáveis, pecadoras, seduzíveis, desleais, um tanto burras. Por isso não gosto de quem quer que tenha inventado essa história toda do paraíso e da serpente. Mas isso é assunto pra outro dia.
Foi às amigas que sempre confessei minhas mágoas mais doloridas, meus erros mais vergonhosos, meus medos mais sombrios. Foi nelas que encontrei espaço para poder ser quem eu era, e foi com as dores delas que também aprendi a não sofrer só as minhas próprias dores. Sempre as primeiras a notar aquele borrado na maquiagem, por descuido ou tristeza. As únicas a acolherem aquilo que nem você mesma é capaz de aceitar em você mesma.
Ainda que sempre tido como vínculo frágil, ano após anos nas salas de escola o fenômeno se repete: lá estão duas amigas. Não se desgrudam. Brigam uma pela outra. Fazem juntas todos os trabalhos em dupla. Falam ao telefone. Ouvem diariamente que mulher é isso e aquilo, mas, lá estão elas. Num mundo em que fomos criadas para competir, ser amiga é resistência.
É à amiga que confiaremos nossos primeiros segredos em geral contados à noite, ela deitada em um colchão e você em outro, a luz apagada, mas as bocas tagarelas e risonhas sem conseguirem calar-se. Ao contrário do que dizem as más línguas, sim, ela os guardará. Porque a língua que sai destilando contra ti não é e nunca será a dela. Aliás, é por causa da amiga que na alvorada de nossas vidas a palavra "segredo" ganha sentido.
Em seu colo a cabeça deitará, e as lágrimas escoarão sem pudor algum. Não há sentido para precisar parecer forte, ou bela, ou sensual, ou madura, ou bem resolvida para a amiga. Afinal, a amizade entre mulheres é uma relação que pode existir sem nenhum vestígio de hierarquia e, sendo assim, como amigas poderemos exibir e aceitar nossa mútua imperfeição e achar graça das nossas coisas ridículas. Nesse amor despretencioso, poderá florescer os primeiros ensaios de maternagem das duas amigas, e como num passeio entre futuro e passado, aceitaremos cuidar como mães calorosas e ser cuidadas como criancinhas feridas.
Com sorte - mais um tanto de resistência -, as amigas poderão crescer juntas, e o tempo será para elas como adubo na terra, não sal cruel que enferruja tantas outras relações antigas. Uma será plateia no espetáculo da vida outra, mas deixará de ser espectadora no instante em que algo der errado. Ao primeiro tropeço, a mão que aplaude torna-se a mão que ampara. 
E um dia, no crepúsculo de nossas vidas - que poderá não obedecer nenhum relógio -, uma das duas poderá partir primeiro. Em silêncio, levando consigo todos os seus segredos, conforme prometido na escola. 
A que fica sentirá um vazio sem tamanho sobre o qual pouco se disse na poesia e na literatura, mas que é tão real que se pode ver. Basta olhar bem nos olhos da amiga órfã, e lá enxergará um buraco. Verá, ainda, que a amyga vive eternamente ali, navegando no mar que preenche os olhos e a memória.
É difícil não sucumbir a um mundo em que toda mulher é uma Eva em potencial, e que O amigO é o verdadeiro. Mas, entre todo concreto pode nascer uma flor. Eis o belo das opositoras, que podem viver uma vida inteira unidas, do alvorecer até a madrugada. Esse é o nosso maior segredo. 

29 de novembro de 2014

Apequenar-me





Quando eu completei 8 anos soube que eu era pequena. Podia ter sido antes, quando eu era até menor. Mas foi assim.
Não era um dia qualquer, era o meu aniversário. Sempre gostei muito de fazer anos, exceto pelos palhaços e demais personagens fantasiados, que me assustavam. E também pela hora de estourar as bexigas no final da festa. Fora esses pequenos contratempos, fazer aniversário era um evento ansiosamente aguardado.
Em 1996 eu estava livre até mesmo dessas pequenas angústias, já que meus pais optaram por fazer uma comemoração singela em nosso apartamento, apenas a família presente. Alheia ao fato de que a escolha havia sido para conter gastos, eu estava feliz da vida.
Coloquei a roupa que minha mãe tinha comprado especialmente para a ocasião, vesti uma tiara preta de veludo no cabelo, cuidei para que minhas madeixas estivessem bem penteadas.
Oito anos era, na minha cabeça, a passagem para uma nova fase da vida. Por isso, passei até batom. Não havia nada mais adulto do que o rubro nos lábios. Além do que, 8 era o algarismo mais divertido de se escrever. Cobrinha que descia sinuosa, e depois ascendia, enroscando-se em si própria. Seria muito legal escrever "8 anos" nos formulários da escola.
Já estava escuro, mas todos ainda estavam em casa. O telefone tocou, eu atendi. Do outro lado, minha professora da época identificou-se. Tive uma explosão de felicidade. Meu aniversário é no dia 6 de julho, começo das férias, e nunca uma professora tinha me ligado.
- Você parece bem feliz. - disse ela. 'O que tem a voz dela?', pensei.
- É que hoje é meu aniversário, Tia!
- Ah, é? Puxa, parabéns!
- Ué, você não sabia?
- Não, florzinha, não sabia. Liguei hoje porque quero conversar com a sua mãe. Ela pode falar comigo agora?
Com uma pontinha de decepção e curiosidade crescente, entreguei o telefone para minha mãe. Assim que a conversa começou, minha mãe apertou o passo e ficou na lavanderia do apartamento. Pela forma disfarçada com que minha mãe respondia, notei que alguma coisa não estava bem. Não sabia se eu havia feito algo errado antes das aulas acabarem, ou se minha professora estava doente, ou se a escola tinha fechado e só reabriria no ano que vem. Essa última possibilidade não seria nada ruim. Minha mãe de vez em quando cruzava o olhar com o meu, e seus olhos pareciam penalizados, mas, ariscos, sempre fugiam em direção ao teto.
A ligação terminou, e uma enxurrada de perguntas infantis soterrou minha mãe, que acabou encurralada na lavanderia. Sentamos em um banquinho baixo, ela me colocou no colo, e calmamente contou que minha colega classe teve uma doença grave na semana anterior, e não teve condições de resistir. A Patrícia havia morrido.
- Qual Patrícia, mãe? A mais alta da sala?
Sim, essa. A mais alta da sala, negra, com os cabelos lindamente crespos, geralmente presos em um volumoso rabo no alto da cabeça. A Patrícia que sentava a duas carteiras de mim. A única que tinha o material escolar simples como o meu: nada dela tinha marca de Piu-Piu ou Moranguinho ou Coca-Cola. Aquela, com quem eu costumava trocar os lápis pretos A2 e as borrachas meio azuis meio cor-de-telha, só pela diversão de sabermos ter as coisas idênticas uma da outra, e confundirmos o que era de quem depois. A Patrícia com os dentes incisivos definitivos recém-adquiridos e grandes demais para sua boca de criança. A menina que ainda lia de soquinho, e que me pedia ajuda com a lição.
- Mas, mãe, ela tava na escola semana passada. Só faltou nos dois últimos dias.
Meningite foi a causa, minha mãe explicou. Silenciei minhas perguntas. Sentada em seu colo, diminuí. "Mas eu não queria que ela tivesse morrido, mãe". Em seguida, afundei o rosto em seu ombro, e chorei. Chorei porque entendi que minha frase não fazia sentido, que nada daquilo dependia de mim. Não dependia de ninguém. Era, assim, ao acaso. Abriu-se um buraco bem no meu estômago e, pela primeira vez na minha curta existência, sentia que não era capaz de chorar a minha tristeza.
Senti medo. Eu também era uma menininha de oito anos, eu também estudava naquela escola, eu também tinha uma borracha que dizia o mito ser capaz de apagar caneta. De repente, o batom em meus lábios pareceu tão aterrorizante quanto aquele que os palhaços usam. Eu tinha oito anos e não me sentia nem um pouquinho mais madura do que ontem, para falar a verdade. Eu não queria que meus amigos morressem, nem que eu morresse, já que era isso que crescer significava.
É duro esse processo de apequenar-se. Caí de um precipício, minhas certezas de gigante eram como as chamas de aniversário, escureceram-se com um simples vento do destino. Mas, afinal, eu era mesmo uma criança, e não um gigante.
E, sabe, acho que não tem nada de mais apequenar-nos diante das grandes coisas. Talvez só assim encontremos nosso real tamanho.



"Porque eu sou do tamanho do que vejo / E não, do tamanho da minha altura".
F. Pessoa



13 de janeiro de 2014

Prisões de Barro




Ouvi dizer que o João de Barro, marido dedicado, após gastar todos os seus esforços para construir uma casa no campo que agrade sua amada, tornava-se um parceiro ciumento e possessivo. No fundo, sua mansão de barro não passava de um artifício para cobrar da fêmea fidelidade eterna, e a passarinha teria de aceitar ser trancada até a morte caso se apaixonasse por outra alma voadora que não a de seu primeiro marido.
Ao saber disso, achei que o João de Barro não passava de um machista retrógrado, desse tipo de homem que põe o orgulho acima de qualquer outro valor e, pior, não sabe fazer um nó de gravata sem depender de sua esposa. É esse tipo de macho que acredita que a esposa é como a mãe, e o casamento é equivalente a um contrato de devoção e dedicação vitalícia. Pior ainda, julguei o João de Barro, esse reacionário bicudo, incapaz de aceitar uma mudança e simplesmente alçar novos voos e também deixar voar.
Enfim, pensei mal sobre a ave. Também não perdoei a Maria de Barro, que aceitava passivamente essa situação, que provavelmente assistia seu frio marido colocar bolotas de argila até fechá-la para sempre numa tumba. Onde está Simone de Beauvoir nessa hora?
Chegou um dia, então, em que eu tive que me despedir. Não para sempre, não por definitivo. Apenas por um tempo, o meu amado iria ficar longe. E no aeroporto, a poucos metros de distância da aeronave de partida, quis com todas as minhas forças prendê-lo numa casa de barro, sem portas ou janelas, e deixá-lo ali. Para que não ousasse voar para longe de mim outra vez.
Abracei-o como se não fosse mais largá-lo, e realmente não ia. Beijei-o como se meus lábios tivessem o poder de enfeitiçá-lo, e fizessem com que ele entendesse a ameaça real que sofria naquele momento. Agora a sequestradora retrógrada seria eu.
Sou humana, e não João-de-Barro, e não houve argila que o prendesse ao meu lado. Nossas mãos se separaram, e lentamente o vi caminhando na fila zigue-zague que conduzia até o detector de metais. Foi exatamente nesse instante que percebi: afinal, as asas foram feitas para serem usadas, sejam elas de pena ou com turbinas.
Foi quando soube que essa história sobre o João de Barro só poderia ser alguma lenda injusta. É da natureza de um passáro voar, assim como é da natureza daquele que ama permitir o voo. Aquele que ama pode sustentar a despedida, porque a presença do amor não é física. A mansão de barro que construímos juntos é lar que vive dentro, e não fora. Ela não aprisiona, apenas protege e acolhe.
E foi assim que, depois compreender a natureza carente do desejo de impedir o voo, soube que tanto João quanto Maria eram inocentes dessas acusações. João, ao amar, não aprisionaria sua Maria, assim como eu também não pude fazê-lo. O que mais queria era vê-lo voar bem alto.

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E eu estava certa. Para saber as origens do mito, clique aqui.

6 de setembro de 2013

Sê inteiro



Certa vez, alguém com amor à poesia teve a brilhante ideia de estampar algum dos tesouros do nosso idioma nas paredes de concreto da nossa metrópole cinzenta. Por sorte, era alguém que conhecia as pessoas certas.
Seu projeto pulou do papel para as paredes do metrô da cidade com vida subterrânea mais ativa do país. Os poemas, sonetos, versos, trovas, antes enclausurados nas páginas de um livro, despiram-se de suas capas e exibiram-se sem um pingo de vergonha. Estavam, às centenas, acompanhando meus passos no metrô. Como toda boa poesia, trazendo aquela sensação que começa pela incompreensão e termina com um arrepio que atravessa o corpo todo e termina nos maxilares.
O poema que mais encontrei, no entanto, foi um de Pessoa (sempre ele), que todos os dias me fitava na estação que ficava ao final do meu caminho diário de volta para casa.
Pessoa, travestido de Ricardo Reis, me dizia todos os dias:

"Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive."


Letras brancas adesivadas, coladas no muro acimentado ao redor da escada rolante. Eu contornava o muro enquanto lia o poema, e na descida da escada rolante suas palavras ecoavam em mim. E assim o ritual se repetia dia após dia. Já sabia que eu deveria entrar no metrô no segundo vagão, para então poder sair pela quarta porta e, quando a mesma se abria, eu estava frente a frente com meu amigo português me aconselhando sempre da mesma forma.
Dizia-me sempre as mesmas coisas. Mas, cada vez em que as lia, a compreensão se apoderava de mim por caminhos distintos.
Em mais um fim de tarde urbano, saio novamente pela quarta porta do segundo vagão, encontro com o muro, mas onde estão meus conselhos? As letras brancas não estavam mais lá.
Aproximei-me. Passos incertos e tímidos, certamente algo destoante das pernas apressadas dos meus colegas de trem. Paro de frente a meu mural, e um laço ardido fecha minha garganta. Deixo meus dedos passearem pelas marcas da cola invisível, restos do que antes enchia de lirismo meu fim de tarde.
O laço foi engolido, e a tristeza desceu a escada rolante comigo. A sombra da cola, contra a luz, fazia com que as palavras ainda se tornassem legíveis. Tentando ser otimista, pensei que pelo menos agora eu as havia de-cora-do.
E qual não foi a minha surpresa quando acompanhei, dia após dia, a cidade se deixando enfeitiçar pelas palavras de Pessoa, tal qual aconteceu em meu coração. Os restos de cola das letras chamavam para si a poeira urbana, e as letras transparentes foram se tornando progressivamente mais visíveis. Por poeira urbana entenda aquele cinza que vem dos carros, fábricas, asfaltos e concretos, e acaba espalhado por todos os lados, a não ser que se limpe com água e sabão.
Com as palavras de um português multifacetado não se brinca, e nem se passa água e sabão. E a lua, palavra grudada na parede, tornou-se grande, tatuada como uma cicatriz cinzenta que deseja se fazer eterna.
E ainda que a tirem, a diminuam, a invisibilizem, lá está ela. Lá estão todas elas, em um só verso, a marca do lirismo, que a cidade até poderia exterminar. Mas rende-se.

15 de agosto de 2013

As lembranças que ficam



Não preciso de nenhum esforço para puxar o fio da memória, e como que tecendo uma carreira de crochet, uma lembrança engata na outra, e no intervalo de um piscar de olhos as mais deliciosas histórias vão colorindo meus pensamentos. Imagens, sons, perfumes, sabores e texturas bailam por minhas lembranças formando uma ópera regida com a maestria que só a infância sabe dar.
O gosto da massa crua do bolo de chocolate e o barulho da colher raspando a tigela me trazem o tilintar da coleção de moedas, que ficava dentro do pote de sorvete. Brincar de cavalgar no braço do sofá, me faz lembrar da guerra de canetinhas enquanto eu fazia a lição. Então, passam algumas histórias, e percebo que em quase todas elas, lá está você.
O cheirinho de arroz e feijão quando eu chegava da escola. Ficar olhando pela varanda a chuva transformar a rua de baixo em uma cachoeira. Rua essa, aliás, que tinha os mais altos penhascos, que eu pulava um a um, e você pacientemente (hoje sei) me parabenizava por cada um dos meus grandes saltos. Se havia tombos, o mercúrio vermelho era cuidadosamente colocado sobre a ferida, com soprinhos gentis entre uma gota e outra. Se ainda assim doía, seu abraço acolhia meu choro sentido.
O silêncio que havia na Igreja enquanto eu te esperava, e caminhava me equilibrando pé ante pé no apoio para joelhos, até andar todos os bancos, num ansioso aguardo pelo churros de doce de leite. Até hoje é meu doce predileto.
Os pequenos pedacinhos de linha e lã que infestavam o chão do quartinho de costura, colorindo-o. O barulho da máquina trabalhando a todo vapor enquanto você fazia as fantasias de apresentação de final de ano da minha escola. As centenas de formiguinhas que passeavam no tapete da sala - eu juro que elas estavam lá, mas sumiam quando você as procurava.
Comer as amoras no pé, até a ponta dos dedos e a língua ficarem vermelhas. Esquentar o sorvete no micro-ondas, misturar a calda de chocolate e sentar para assistir televisão. As almofadas enormes que cobriam a cama, e que formavam uma ótima cabana quando eu precisava me esconder.
O sono depois do almoço, e todas as vezes que acordei antes só para ficar mexendo no seu cabelo enquanto você dormia. Aquela fome que me dava à tardinha, e que só passava se eu repetisse o almoço.
As longas negociações para ir à aula de natação. As longas redações para a escola. As longas conversas que você tinha com suas amigas no sofá. 
O cesto de roupa suja, de vime branco, e o triste dia em que descobri que eu não cabia mais dentro dele. A gaveta das suas maquiagens e escovas de cabelo. A caixinha de música. A Bíblia. O espelho com moldura de metal que, para mim, parecia ter saído de alguma dessas histórias de princesas.
O barulho da dobradiça da porta de vidro da estante da sala, o vento forte que batia derrubando, e às vezes quebrando, os porta-retratos que ficavam sobre ela. O cheiro doce do armário onde ficavam o pote de pão de mel e a caixa de bombons. 
O aroma do seu café. O dia em que aprendi a fazer seu café. A prender botão. A dar o ponto atrás. A segurar na agulha de crochet. A ir sozinha até a padaria. A atravessar a rua. A andar de ônibus. A guardar os pratos. A escolher a lã para a tapeçaria. A jogar buraco. E tantas mais outras coisas que aprendi, justamente as mais valiosas, mas que são grandes demais para caber no curto espaço da palavras. 
Foi com você que aprendi que não há nada tão libertador quanto a constância de um amor transmitido em gestos. São atos que duram um átimo, mas acabam guardados a sete chaves na gaveta mais sagrada da vida do ser amado e, como que por mágica, lembranças se transmutam em relíquias eternas. Vinte anos depois, o gosto do seu arroz com feijão, os saltos na calçada e todas as outras histórias são como um píer seguro para o qual aporto todos os dias da minha vida, e assim posso, destemida, continuar a navegar oceano adentro.

Obrigada por me dar minhas melhores memórias.

14 de junho de 2013

Criador de monstros em moinhos de vento





Queria poder escrever algo que, de fato, falasse por mim. Algo que imprimisse no papel o que eu venho tentando há tanto tempo, desde que me lembro escrever.
Eis aqui o paradoxo do escritor: no fundo, ele se sente um homem mal compreendido. E a responsabilidade não é dos outros por portarem algum tipo de incompetência compreensiva, mas do Próprio, pela inabilidade expressiva. 
A minha teoria é de que a minha perseverança incansável na escrita reside justamente na minha incapacidade de falar usando menos. O pouco com o qual todos os felizes não-escreventes se contentam, o pouco que precisa só de duas ou três linhas para contar satisfatoriamente como foi o dia.
O que para mim é miséria, para a maioria é abundância e ponto. Resta-me essa fome às avessas, porque o desejo pela letra é tão voraz quanto o do estômago, mas a diferença é que as palavras não são engolidas, mas precisam deslizar, escapar, e assim são despejadas de dentro mim. Às vezes cuidadosamente, é verdade, numa cautela quase matemática. Mas às vezes é numa única golfada, desmedida e emocionada.
Não importa como se dá esse escape, cada texto escrito é um alívio parcial e temporário para esse esvaziamento persistente que renasce, forte, quando menos se espera.
O escritor é um bandeirante solitário. Desbrava a linguagem, essa floresta enorme e multifacetada e, dentro dela, quer encontrar seu próprio dialeto. Para ele não bastam as trilhas já sistematizadas e as frases já ditas. Ele sente que pode (e deve) dizer algo que somente ele é capaz, e abraça essa tarefa como uma missão. Frequentemente, ele não sabe por onde começar e passa a vida tentando. Sorte de quem o lê.





29 de maio de 2013

Sagrados



Acredito no que meus olhos vêem.
No que a boca beija e saboreia.
Os perfumes que preenchem meus pulmões
despertam minha mais profunda fé.
E as texturas que percorrem a pele,
e os sons que musicam em meus ouvidos.

Vejo, ouço... sinto.
Isso é crer?

Tudo que está além dos meus sentidos,
pouco me interessa.
Nos meus sentidos moram todos os mistérios,
e gastarei a vida a desvendá-los.
Prazerosamente, um a um.

E, se um dia, provarem-se errados
os canais que me conectam ao mundo,
morrerei sorrindo e direi:
Ao menos, vivi!


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Brincando de ser Caeiro. Espero que ele não se revire na tumba.

8 de maio de 2013

No ônibus







Eram duas mulheres no ônibus. As duas mulatas, de alguma idade indefinível, algo entre 20 e 40. A primeira, magra e com os olhos fundos, vestindo uma saia marrom até o tornozelo e uma blusa azul com os dizeres "Jesus me ama". Cabelo liso, castanho, preso num despretensioso rabo de cavalo baixo. A segunda, um pouco mais gordinha, com o rosto redondo e risonho, o cabelo crespo e curto, mas também preso. Sua saia bege caía até o chão e uma camiseta branca cobria os seios fartos.
E o menino. Filho da primeira, uns três anos, uns olhinhos vivos e bochechas sobressalentes que davam a ele um ar risonho. Comia um salgadinho fedido e, alheio à conversa das duas, olhava pela janela.
O meu registro começa com uma fala da de blusa azul:
- Porque o pastor, com a graça das palavras de Cristo, disse que não cabe a nós julgar.
- É, não há porque julgar.
- Jesus não julgava ninguém!
- É o milagre de Deus na terra!
- Jesus era mais do que um milagre.
- Muito mais! Jesus era tudo!
- Ele não era, é!
- Ele era, é, e sempre será!
- Sempre será!
- Graças a Deus!
- Graças a Deus!
Divertia-me com a discreta disputa das duas para saber quem louvava mais, numa dialética cuja síntese era sempre concordar na fé. Foi quando o pequeno interrompeu-as:
- Mamãe! Mamãe! Olha mamãe! Um fuca! Um fuca!
O ônibus estava parado no semáforo, ao lado de um fusca amarelo-colonial. Até hoje me impressiono como esse modelo automobilístico ganhou um quê mitológico, atraindo olhares das mais variadas gerações de crianças, quase como contos de fadas  O menino apontava para o carro e gritava seu nome repetidas vezes, com a boca e os dedos melecados de salgadinho colados na janela, os olhos brilhando de fascinação autêntica, como se aquele fosse um espécime raríssimo.
O diálogo sagrado das duas por um instante foi quebrado. Disseram algumas palavras de aceitação, apenas para corresponder ao entusiasmo do menino, mas logo voltaram ao assunto anterior. O menino calou-se quando o sinal abriu. Seus olhinhos acompanharam o fusca até que ele se perdesse em meio aos outros carros.
A segunda, da saia bege e rosto redondo, foi quem retomou a conversa.
- Esse mundo está cheio de gente perdida, de mulheres sem pudor, homens que só pensam nos prazeres da carne, gente drogada, viciada, perdida na vida. Falta Deus no coração dos Homens!
- Deus, que nos deixou palavras tão bonitas, e nos deu a vida, e nos deu tudo que nós temos.
- Todo dia dou graças a Deus por tudo que Ele me deu!
- Deus abençoou tanto a minha vida!
- A minha também. E dou graças a Deus ao dia em que conheci o pastor!
- Homem santo! Antes de frequentar o culto eu era uma perdida, graças a Deus hoje em dia estou mudada.Tenho tudo, nada me falta.
- E eu, então? Conquistei tudo de bom da minha vida, me tornei uma pessoa de Deus! E Deus só me deu coisas boas!
- Graças a Deus!
- Graças a Deus, nosso Senhor!
Enquanto as duas, ainda falando, já se levantavam para descer do ônibus, o menino retomou seu chamado, agora olhando firmemente para a mãe:
- Mamãe! Mamãe!
As duas pareceram elevar seu tom de voz. O menino persistiu:
- Mamãe! Mamãe!
Mais uma vez, o menino nada conseguiu. Dessa vez, com um tom de voz infantil que misteriosamente se destaca de todo resto:
- Mamããããããe!
O ônibus parou no ponto. Silêncio. As duas se entreolham. Alguns passageiros voltaram-se em direção à tríade.
- Faltou o fuca!
- Quê?
- Deus deu tudo, mas esqueceu o fuca!
A porta se abriu, e os três desceram.


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Baseado em fatos reais.

8 de janeiro de 2013

Um sonho




Todo sonho é assim, feito de três partes: a massa de baixo, o meio cremoso e a massa de cima, num tipo de paraíso convexo. Ficam lindamente alinhados na vitrine da padaria, em todos os tamanhos.  Há os pequenos, que matam aquela vontadinha rápida de doce; os médios, que enchem a boca por quatro ou cinco mordidas e deixam os dedos melados; e os gigantes, que podem ser comidos por apenas um guloso, ou divididos por toda família.
Os melhores são os quentinhos, fresquinhos. A massa crocante por fora e fofa por dentro, o creme de confeiteiro cor amarelo-bebê, o açúcar espalhado em volta. Quando você termina de comer, lambe os lábios e ainda irá senti-los doces.
Um sonho perfeito é até parecido com o sonho mesmo. Aquele que a gente deseja, não o que a gente dorme.
O sonho-sonho também tem três partes: um antes, um durante e um depois. A primeira, a de baixo, é a mais sem graça se comparada às outras três. Mas se você tivesse só ela, acharia meio bom também. Meio bom, e só. 
A do meio, do durante, é a mais macia e doce. É ela que faz o sonho ser um sonho e não bolinho de chuva ou um delírio. E mesmo que você tenha a sorte de saborear muitos e muitos sonhos, é a camada do meio que faz com que você sempre queira mais um. 
Finalmente, a que vem por cima, do depois, faz com o sonho fique completo, fechado, num sanduíche de perfeição que cabe no espaço da memória.
Assim como o doce de padaria, o sonho também tem tamanhos diferentes, e quanto maior ele é, mais difícil é aguentar um sozinho. Precisamos de outros que apreciem junto, senão ficamos estufados com tanto sonho, ou até tristes por termos um sonho inacabado jogado no lixo.
Se o sonho está velho, esquecido, ele endurece e até mofa. Não dá mais tempo de vivê-lo. Ele azeda.
Talvez, os sonhos-doce perfeitos tenham ganhado esse nome porque foram inspirados em sonhos-desejo perfeitos. Aqueles que surgiram de uma bela expectativa, que quando foram realizados eram ainda melhores do que se pensava, e quando acabaram deixaram uma saudade boa. Então, os sonhos bem vividos poderão ainda ser relembrados, porque seu doce infestou beiços, cabeça, coração. E basta um estalar (ou lamber) de dedos, e aqueles momentos açucarados descerão pela garganta outra vez.

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Um texto sobre a realização de um sonho.

17 de outubro de 2012

O Fim






O livro ainda está entre minhas mãos. Releio a última frase, e olho o vazio que resta na página. Acho que é um pouco do que me resta desse instante: uma alma branca.
Viro a página como se buscasse um epílogo inexistente ou um capítulo secreto reservado apenas para os mais curiosos. Procuro em vão por uma frase mais, uma espécie de consolo para meu abandono.
Mas isso é esperar por uma ressurreição. E, para mim, é certo que o final de um livro é uma pequena morte. Jazem ali os desejos que compartilhei com suas personagens, e morre esse mergulho fantasioso que encheu meu mundo de cores diferentes das de sempre. Num empuxo violento, volto à superfície branca da realidade. Sinto meus pés tocarem o chão mais uma vez, e meus sapatos parecem duros e ásperos.
Aproximo o livro de meu rosto e inspiro profundamente, sem me dar conta da estranheza de tal cena. Não importa, é como se beijasse um amor carinhosamente pela última vez. Pouso o livro em meu colo. Sei que aquela é a nossa despedida.
Nada me preparou para este momento, nem mesmo o tato das páginas emagrecendo em minha mão direita. Perco um mundo que era nosso, do livro e meu. Ganho uma porção de memórias que, se forem boas o bastante, se tornam inesquecíveis.
Sempre achei que havia um quê de mágico nesse instante fugaz em que olhos terminam de correr a última palavra de um livro. É uma espécie saudade de algo que nunca tive.
Depois, o livro volta para a prateleira. Agora, ele torna-se um velho amigo, e um dia abrirei suas páginas amareladas para relembrar as histórias que vivemos juntos, como a nostalgia compartilhada pelos amigos de colégio. Sou capaz de perdoá-lo pela crueldade de ter chegado ao fim quando observo que, assim como o toque dos meus dedos envergou suas beiradas, eu também carrego em mim, para sempre, sedimentos de suas palavras.