23 de agosto de 2012

Condenados





Era tarde da noite, e uma chuva de gotas densas caía. Elas explodiam no meu para-brisa, mas em um segundo eram eliminadas pelo limpador, que se mexia desesperadamente, como se fosse uma moça obcecada por limpeza correndo atrás de seus filhos e suas lambanças.
Eu seguia meu caminho, movido pelo silêncio da tempestade caindo sobre a lataria do carro. Perdida em meus pensamentos, poderia ter perdido aquela cena. Mas, alguma força invisível fez com que eu olhasse para a minha direita, logo após fazer uma curva. Curva essa que, aliás, faz parte do meu caminho diário, e na qual nunca havia notado nada.
Naquela noite, sob a tempestade, estavam enfileiradas na calçada dezenas de barracas de acampamento. Encharcadas, a lona sacudindo violentamente ao ritmo da ventania, eram barracas de várias cores e modelos que se assemelhavam a pirâmides irregulares e frágeis, como um Egito às avessas.
O que estariam fazendo ali, além de comunhar a triste solidão de uma noite urbana e gélida? Talvez estivessem à venda ingressos para algum desses shows que fazem as pré-adolescentes chorarem e gritarem, foi o que pensei. Abri mais o meu olhar para o cenário ao redor, buscando mais pistas para desvendar tal intrigante mistério. Vi um muro. Um muro alto. Acima dele, um arame enrolado com pontas, como mil lanças ameaçando para todos os lados. Mais acima, uma torre. Uma guarita com grades e vidros escuros. 
Enquanto eu pensava nisso, o cenário já havia deixado a janela do meu carro, mas continuava aceso em mim. Lá dentro, então, estavam os supostos criminosos, os pecadores, os deturpadores, os corrompedores... É o que se diz. E, fora, estavam aqueles que eram inexoravelmente condenados. Impiedosamente, um carrasco chamado cupido cravou em seus corações a flechada imperdoável da eternidade, que leva as pobres almas atingidas a prepararem os pratos favoritos de alguém e a dormirem sob o manto molhado da noite apenas para poder vê-los sendo saboreados pela boca amada.
Naquelas pequenas pirâmides de pano dormiam os verdadeiros prisioneiros, cujo crime principal poderia ser considerado passional e doloso. Sem atenuantes. Seu delito estava impresso nas portas daquelas barracas molhadas, estava iluminado pelo holofote do farol do meu carro ao passar por eles, estava gravado nos muros altos e protegido por mil lanças. Se dentro estavam confinados aqueles que foram julgados culpados, fora estavam os que pegaram um pouco da culpa para si, misturaram com farinha, lágrimas, um pouco de açúcar e perdão, e transformaram-na em bolo de fubá.

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Imagem retirada daqui.