23 de julho de 2010

Imperfeições

Naquela casa vivia alguém cansado das rachaduras na fachada. Ficou inconformado, pois percebeu que tudo aquilo que é rígido demais não resistia à mínima flexibilidade, e se quebrava. 'Devemos ser perfeitamente brancos', era o que sempre dizia.
Resolveu, portanto, contratar um rapaz, que chegou vestindo seu boné e carregando suas ferramentas. Calça rota, camiseta que notadamente não estava sendo usada pela primeira vez. Eram cicatrizes que denunciavam: pingos de tinta, falta de cores, pés grandes e grossos, mãos fortes e unhas com marcas de seus esforços. Apresentou-se como homem especializado em pedras.
O sotaque era do lugar de onde todos eles nascem. A fala um tanto quanto indecifrável, mas não importa, pois naquela casa havia alguém apenas cansado de rachaduras. Sem grandes ambições de fazer novos amigos, apenas contratos que acabassem com rachaduras.
Eles conversam apenas sobre rejuntes, espátulas, tijolos. E o que mais seria possível?
Aquela pessoa queixa-se das rachaduras, aponta uma a uma com pesar e raiva. Reclama da mobilidade da terra que sustenta suas paredes, e diz que seria melhor se o mundo todo fosse cimentado, imóvel e rígido. O homem que lida com pedras não entende, mas por algum motivo sente-se culpado pelas rachaduras.
Finalmente ele fica a sós com elas para fazer seu trabalho. Não as odeia, mas foi chamado para retirá-las dali. Monta sua escada, prepara seus instrumentos. Para consertá-las, primeiro é necessário despí-las ainda mais, penetrar nas reentrâncias daquela parede sem destruí-la.
Ele inicia suas marretadas, que para o leigo (que não sabe lidar com pedras) parecem violentas e ao acaso. Mas o especialista sabe exatamente o porquê de cada batida. As batidas têm um ritmo, ritmo de uma música que toca em silêncio, dentro dos ouvidos do batedor.
Seus lábios se movimentam. As palavras daquela canção precisam ser libertadas, as batidas as empurram para fora. As rimas montam-se quase sem querer, cada verso da música marcado por um estrondo seco na parede.
O rapaz era especialista em pedras, não em música, mas timidamente seus lábios cantarolam uma canção em um idioma de algum país mais ao norte. Logo se vê que o homem também não era especialista em línguas estrangeiras, mas...
Seu martelo marca o ritmo de sua canção, e ele então entra numa espécie de mistura. Não se sabe mais o que ali era pedra, parede, martelo, especialista, música. Tudo se funde, transforma-se numa bela orquestra regida por uma presença invisível. A voz que brota daquela garganta ganha corpo, penetra nas imperfeições daquela parede, como que consolando-as por seu triste fim. O martelo é levado pelas notas musicais.
O rapaz não pensou, mas se eu estivesse no lugar dele pensaria: "De onde vem essa voz que sai de minha boca?". Não era nem mesmo uma voz de rapaz, muito menos de um rapaz especialista em pedras. Aquela música, que toca em rádios que melam os dedos de tão românticas, embora assustadoramente igual à original, está completamente diferente. Tem uma moldura feita por espátulas e mãos calejadas. Os acordes são definidos pelo ruído seco da obra. E a métrica... ah, tão livre! De quantas cores aquela fachada foi colorida além do rigoroso branco!
Essa bela sonoridade passeava junto com o vento, espetáculo sem plateia. As pessoas eram surdas, eis o grande porém. Passantes, neste local, apenas passam. Não ouvem, não veem. Os passantes decerto acharam que um especialista em pedras jamais poderia musicar: ele apenas tapava rachaduras. E então, com a deficiência fundamental do excesso de categorias, ninguém ouviu nem viu nada.
Passaram-se horas de um belo concerto (com 'c'), tarefa realizada. O especialista guardou seus instrumentos.
Olhou para sua fachada, reconstruída. Ficou pensando em como agora ela está exatamente igual a todas as outras fachadas, deu um profundo suspiro. Olhou ao redor, não havia ninguém. Saiu de lá sem dizer nada.



Um comentário:

Thiago disse...

Belo texto Alê!
Posso dizer que pude ouvir o conserto (com 's') do homem que tapava rachaduras..