29 de dezembro de 2011

O Defeito



Estamos todos, sem exceção, submetidos a uma lógica capitalista, quer queiramos ou não. Longe ou perto, a favor ou contra, é isso que se apresenta no momento. Estamos na era dos compradores e dos vendedores, na era em que um dos poucos direitos preservados até as últimas consequências são os do consumidor. Não poderia ser diferente.
Quando criança, acompanhava com certo temor as vezes em que meu pai voltava a determinadas lojas para exigir seus direitos, que ele julgara terem sido burlados leve ou gravemente. Nunca havia visto meu pai falando com tal convicção por nada e nem com ninguém, como vi em tais circunstâncias. Atualmente, posso dizer que não segui os passos do meu papito, sou bondosa nas cobranças e bastante tolerante com os profissionais de serviços, e confesso que esse comportamento já me fez ter alguns pequenos prejuízos. No entanto, eles ainda não foram suficientes para que eu mudasse minha postura.
Mas minha heresia não para por aí. Não só sou caridosa com antipatias de shopping, como sou uma  grande admiradora dos produtos com defeito. Acho verdadeiramente belo quando chega às minhas mãos um produto com esse tal "defeito de fábrica".
Estamos falando de um pequeno defeito que escapou ileso a uma fábrica! Justamente o lugar das coisas feitas em linha, de máquinas e operários com especializações microscópicas, executando a mesma tarefa por dias, anos, décadas. O cárcere de corpos e produtos. 
Penso que deveríamos erguer monumentos ao encontrarmos um único produto com defeito. Deveríamos investir décadas de estudos para compreendê-los, e depois deveríamos preservá-los em salas ambientadas, que conservassem sua imperfeição. Poderíamos até montar um museu com eles, e torná-los atrações turísticas das cidades.
Pois que há nesse mundo de mais incrível senão que ainda exista espaço para a imperfeição? Ainda que no ambiente mais inóspito, lá está ela desfilando discretamente, quase despercebida, mas chegando a seu destino final e causando dores de cabeça nos compradores e atendentes de telemarketing.
É assim que o defeito mostra sua inegável superioridade, revelando toda nossa imperfeita humanidade, sobrevivendo a todas as intervenções planificadas e plastificadas, tentativas vãs de sanar aquilo que é imanente à nossa ação: o erro. 
Bastou um microssegundo para que o rapaz que martelava deixasse passar apenas um único prego. Mais um microssegundo, e o seguinte encaixou sem notar uma segunda peça ao prego frouxo. Pequenos microssegundos: um pensava tristemente no rompimento do namoro, o outro estava com uma dor de barriga do jantar farto da noite passada. Um prego solto era levado pela esteira, transformado em coisa, e o homem rude da inspeção, o último da linha, sentiu o perfume da chefe que passou atrás de si naquele momento, e em um flash lembrou-se do cheiro de sua avó, que lhe dava beijos estalados e preparava-lhe bolos recheados quando criança. 
E, assim, chega às mãos do comprador um carrinho de brinquedo com uma porta que não fecha direito. Munido de seu código de defesa, o consumidor corre para trocá-lo por outro, dessa vez perfeito. Troca, sem saber, uma história de namoros terminados, jantares calóricos e cheiro de vovó, por uma outra que conseguiu atravessar uma fábrica inteira sem nenhum resquício de humanidade.

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Faço desse um atípico texto de Feliz Ano Novo. Para que as pessoas sejam mais benevolentes com os  defeitos, de uma forma geral :)

3 comentários:

Iara disse...

E pra que nem tudo o que sai do roteiro seja um defeito!
Gostei do texto (:

Má Peters disse...

nem sabia que vc tinha um blog! e não tinha parado pra pensar sobre isso... os defeitos que trazem em si a humanidade que não foi extinta! mto bonito o texto, adorei o que ele diz! feliz ano novo! e que ele venha cheio de imperfeições humanas!

Daniel Andrade disse...

O capitalismo (consumismo exarcebado) nos tornou tão robolobotizados que o mero erro veio a lembrar que apesar de insistirmos tanto em nos automatizar ainda somos demasiadamente humanos, por dentro e por fora. Ando muito revoltado de ter que vender minha energia vital (hoje reduzida ao bordão força de trabalho) passando a maior parte das horas de vida fora da minha vida, “enriquecendo” um ser humano, tão maquinado quanto eu, a se iludir cada dia mais com a ociosidade que o meu trabalho lhe proporciona. Feliz eram os legítimos indígenas, que tiravam da terra o seu sustento e eram livres como todos os outros bichos da terra. Vejo o tempo passando meu rosto se modificando e alguém repetindo a frase que algum cretino escravizador cunhou nas mentes miragemadas pelos “prazeres” do seu salário mínimo: “trabalhar edifica o homem” kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk quero ser livre outra vez, não podendo eu voltar ao útero materno humano penso que só me libertarei ao voltar ao útero materno da mãe terra: a sete palmos de distância do capital, tornando-me assim algo com defeito: que aspirou demasiadamente humano.