15 de agosto de 2013

As lembranças que ficam



Não preciso de nenhum esforço para puxar o fio da memória, e como que tecendo uma carreira de crochet, uma lembrança engata na outra, e no intervalo de um piscar de olhos as mais deliciosas histórias vão colorindo meus pensamentos. Imagens, sons, perfumes, sabores e texturas bailam por minhas lembranças formando uma ópera regida com a maestria que só a infância sabe dar.
O gosto da massa crua do bolo de chocolate e o barulho da colher raspando a tigela me trazem o tilintar da coleção de moedas, que ficava dentro do pote de sorvete. Brincar de cavalgar no braço do sofá, me faz lembrar da guerra de canetinhas enquanto eu fazia a lição. Então, passam algumas histórias, e percebo que em quase todas elas, lá está você.
O cheirinho de arroz e feijão quando eu chegava da escola. Ficar olhando pela varanda a chuva transformar a rua de baixo em uma cachoeira. Rua essa, aliás, que tinha os mais altos penhascos, que eu pulava um a um, e você pacientemente (hoje sei) me parabenizava por cada um dos meus grandes saltos. Se havia tombos, o mercúrio vermelho era cuidadosamente colocado sobre a ferida, com soprinhos gentis entre uma gota e outra. Se ainda assim doía, seu abraço acolhia meu choro sentido.
O silêncio que havia na Igreja enquanto eu te esperava, e caminhava me equilibrando pé ante pé no apoio para joelhos, até andar todos os bancos, num ansioso aguardo pelo churros de doce de leite. Até hoje é meu doce predileto.
Os pequenos pedacinhos de linha e lã que infestavam o chão do quartinho de costura, colorindo-o. O barulho da máquina trabalhando a todo vapor enquanto você fazia as fantasias de apresentação de final de ano da minha escola. As centenas de formiguinhas que passeavam no tapete da sala - eu juro que elas estavam lá, mas sumiam quando você as procurava.
Comer as amoras no pé, até a ponta dos dedos e a língua ficarem vermelhas. Esquentar o sorvete no micro-ondas, misturar a calda de chocolate e sentar para assistir televisão. As almofadas enormes que cobriam a cama, e que formavam uma ótima cabana quando eu precisava me esconder.
O sono depois do almoço, e todas as vezes que acordei antes só para ficar mexendo no seu cabelo enquanto você dormia. Aquela fome que me dava à tardinha, e que só passava se eu repetisse o almoço.
As longas negociações para ir à aula de natação. As longas redações para a escola. As longas conversas que você tinha com suas amigas no sofá. 
O cesto de roupa suja, de vime branco, e o triste dia em que descobri que eu não cabia mais dentro dele. A gaveta das suas maquiagens e escovas de cabelo. A caixinha de música. A Bíblia. O espelho com moldura de metal que, para mim, parecia ter saído de alguma dessas histórias de princesas.
O barulho da dobradiça da porta de vidro da estante da sala, o vento forte que batia derrubando, e às vezes quebrando, os porta-retratos que ficavam sobre ela. O cheiro doce do armário onde ficavam o pote de pão de mel e a caixa de bombons. 
O aroma do seu café. O dia em que aprendi a fazer seu café. A prender botão. A dar o ponto atrás. A segurar na agulha de crochet. A ir sozinha até a padaria. A atravessar a rua. A andar de ônibus. A guardar os pratos. A escolher a lã para a tapeçaria. A jogar buraco. E tantas mais outras coisas que aprendi, justamente as mais valiosas, mas que são grandes demais para caber no curto espaço da palavras. 
Foi com você que aprendi que não há nada tão libertador quanto a constância de um amor transmitido em gestos. São atos que duram um átimo, mas acabam guardados a sete chaves na gaveta mais sagrada da vida do ser amado e, como que por mágica, lembranças se transmutam em relíquias eternas. Vinte anos depois, o gosto do seu arroz com feijão, os saltos na calçada e todas as outras histórias são como um píer seguro para o qual aporto todos os dias da minha vida, e assim posso, destemida, continuar a navegar oceano adentro.

Obrigada por me dar minhas melhores memórias.

Um comentário:

Maíra disse...

Alê, texto maravilhoso! A universalidade das lembranças puxadas em comboio através de sensações!