29 de novembro de 2014

Apequenar-me





Quando eu completei 8 anos soube que eu era pequena. Podia ter sido antes, quando eu era até menor. Mas foi assim.
Não era um dia qualquer, era o meu aniversário. Sempre gostei muito de fazer anos, exceto pelos palhaços e demais personagens fantasiados, que me assustavam. E também pela hora de estourar as bexigas no final da festa. Fora esses pequenos contratempos, fazer aniversário era um evento ansiosamente aguardado.
Em 1996 eu estava livre até mesmo dessas pequenas angústias, já que meus pais optaram por fazer uma comemoração singela em nosso apartamento, apenas a família presente. Alheia ao fato de que a escolha havia sido para conter gastos, eu estava feliz da vida.
Coloquei a roupa que minha mãe tinha comprado especialmente para a ocasião, vesti uma tiara preta de veludo no cabelo, cuidei para que minhas madeixas estivessem bem penteadas.
Oito anos era, na minha cabeça, a passagem para uma nova fase da vida. Por isso, passei até batom. Não havia nada mais adulto do que o rubro nos lábios. Além do que, 8 era o algarismo mais divertido de se escrever. Cobrinha que descia sinuosa, e depois ascendia, enroscando-se em si própria. Seria muito legal escrever "8 anos" nos formulários da escola.
Já estava escuro, mas todos ainda estavam em casa. O telefone tocou, eu atendi. Do outro lado, minha professora da época identificou-se. Tive uma explosão de felicidade. Meu aniversário é no dia 6 de julho, começo das férias, e nunca uma professora tinha me ligado.
- Você parece bem feliz. - disse ela. 'O que tem a voz dela?', pensei.
- É que hoje é meu aniversário, Tia!
- Ah, é? Puxa, parabéns!
- Ué, você não sabia?
- Não, florzinha, não sabia. Liguei hoje porque quero conversar com a sua mãe. Ela pode falar comigo agora?
Com uma pontinha de decepção e curiosidade crescente, entreguei o telefone para minha mãe. Assim que a conversa começou, minha mãe apertou o passo e ficou na lavanderia do apartamento. Pela forma disfarçada com que minha mãe respondia, notei que alguma coisa não estava bem. Não sabia se eu havia feito algo errado antes das aulas acabarem, ou se minha professora estava doente, ou se a escola tinha fechado e só reabriria no ano que vem. Essa última possibilidade não seria nada ruim. Minha mãe de vez em quando cruzava o olhar com o meu, e seus olhos pareciam penalizados, mas, ariscos, sempre fugiam em direção ao teto.
A ligação terminou, e uma enxurrada de perguntas infantis soterrou minha mãe, que acabou encurralada na lavanderia. Sentamos em um banquinho baixo, ela me colocou no colo, e calmamente contou que minha colega classe teve uma doença grave na semana anterior, e não teve condições de resistir. A Patrícia havia morrido.
- Qual Patrícia, mãe? A mais alta da sala?
Sim, essa. A mais alta da sala, negra, com os cabelos lindamente crespos, geralmente presos em um volumoso rabo no alto da cabeça. A Patrícia que sentava a duas carteiras de mim. A única que tinha o material escolar simples como o meu: nada dela tinha marca de Piu-Piu ou Moranguinho ou Coca-Cola. Aquela, com quem eu costumava trocar os lápis pretos A2 e as borrachas meio azuis meio cor-de-telha, só pela diversão de sabermos ter as coisas idênticas uma da outra, e confundirmos o que era de quem depois. A Patrícia com os dentes incisivos definitivos recém-adquiridos e grandes demais para sua boca de criança. A menina que ainda lia de soquinho, e que me pedia ajuda com a lição.
- Mas, mãe, ela tava na escola semana passada. Só faltou nos dois últimos dias.
Meningite foi a causa, minha mãe explicou. Silenciei minhas perguntas. Sentada em seu colo, diminuí. "Mas eu não queria que ela tivesse morrido, mãe". Em seguida, afundei o rosto em seu ombro, e chorei. Chorei porque entendi que minha frase não fazia sentido, que nada daquilo dependia de mim. Não dependia de ninguém. Era, assim, ao acaso. Abriu-se um buraco bem no meu estômago e, pela primeira vez na minha curta existência, sentia que não era capaz de chorar a minha tristeza.
Senti medo. Eu também era uma menininha de oito anos, eu também estudava naquela escola, eu também tinha uma borracha que dizia o mito ser capaz de apagar caneta. De repente, o batom em meus lábios pareceu tão aterrorizante quanto aquele que os palhaços usam. Eu tinha oito anos e não me sentia nem um pouquinho mais madura do que ontem, para falar a verdade. Eu não queria que meus amigos morressem, nem que eu morresse, já que era isso que crescer significava.
É duro esse processo de apequenar-se. Caí de um precipício, minhas certezas de gigante eram como as chamas de aniversário, escureceram-se com um simples vento do destino. Mas, afinal, eu era mesmo uma criança, e não um gigante.
E, sabe, acho que não tem nada de mais apequenar-nos diante das grandes coisas. Talvez só assim encontremos nosso real tamanho.



"Porque eu sou do tamanho do que vejo / E não, do tamanho da minha altura".
F. Pessoa



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