Eram duas mulheres no
ônibus. As duas mulatas, de alguma idade indefinível, algo entre 20 e
40. A primeira, magra e com os olhos fundos, vestindo uma saia marrom até o
tornozelo e uma blusa azul com os dizeres "Jesus me ama". Cabelo
liso, castanho, preso num despretensioso rabo de cavalo baixo. A segunda, um
pouco mais gordinha, com o rosto redondo e risonho, o cabelo crespo e curto,
mas também preso. Sua saia bege caía até o chão e uma camiseta branca cobria os seios fartos.
E o menino. Filho da
primeira, uns três anos, uns olhinhos vivos e bochechas sobressalentes que
davam a ele um ar risonho. Comia um salgadinho fedido e, alheio à conversa das
duas, olhava pela janela.
O meu registro começa com uma fala da de blusa azul:
- Porque o pastor,
com a graça das palavras de Cristo, disse que não cabe a nós julgar.
- É, não há porque
julgar.
- Jesus não julgava
ninguém!
- É o milagre de Deus
na terra!
- Jesus era mais do
que um milagre.
- Muito mais! Jesus
era tudo!
- Ele não era, é!
- Ele era, é, e
sempre será!
- Sempre será!
- Graças a Deus!
- Graças a Deus!
Divertia-me com a
discreta disputa das duas para saber quem louvava mais, numa dialética cuja
síntese era sempre concordar na fé. Foi quando o pequeno interrompeu-as:
- Mamãe! Mamãe! Olha
mamãe! Um fuca! Um fuca!
O ônibus estava parado no semáforo, ao lado de um fusca amarelo-colonial. Até hoje me impressiono como esse modelo automobilístico ganhou um quê mitológico, atraindo olhares das mais variadas gerações de crianças, quase como contos de fadas O menino apontava para o
carro e gritava seu nome repetidas vezes, com a boca e os dedos melecados de
salgadinho colados na janela, os olhos brilhando de fascinação autêntica, como
se aquele fosse um espécime raríssimo.
O diálogo sagrado das
duas por um instante foi quebrado. Disseram algumas palavras de aceitação,
apenas para corresponder ao entusiasmo do menino, mas logo voltaram ao assunto
anterior. O menino calou-se quando o sinal abriu. Seus olhinhos acompanharam o
fusca até que ele se perdesse em meio aos outros carros.
A segunda, da saia
bege e rosto redondo, foi quem retomou a conversa.
- Esse mundo está
cheio de gente perdida, de mulheres sem pudor, homens que só pensam nos
prazeres da carne, gente drogada, viciada, perdida na vida. Falta Deus no
coração dos Homens!
- Deus, que nos
deixou palavras tão bonitas, e nos deu a vida, e nos deu tudo que nós temos.
- Todo dia dou graças
a Deus por tudo que Ele me deu!
- Deus abençoou tanto
a minha vida!
- A minha também. E
dou graças a Deus ao dia em que conheci o pastor!
- Homem santo! Antes
de frequentar o culto eu era uma perdida, graças a Deus hoje em dia estou
mudada.Tenho tudo, nada me falta.
- E eu, então?
Conquistei tudo de bom da minha vida, me tornei uma pessoa de Deus! E Deus só
me deu coisas boas!
- Graças a Deus!
- Graças a Deus,
nosso Senhor!
Enquanto as duas,
ainda falando, já se levantavam para descer do ônibus, o menino retomou seu
chamado, agora olhando firmemente para a mãe:
- Mamãe! Mamãe!
As duas pareceram
elevar seu tom de voz. O menino persistiu:
- Mamãe! Mamãe!
Mais uma vez, o
menino nada conseguiu. Dessa vez, com um tom de voz infantil que misteriosamente
se destaca de todo resto:
- Mamããããããe!
O ônibus parou no
ponto. Silêncio. As duas se entreolham. Alguns passageiros voltaram-se em
direção à tríade.
- Faltou o fuca!
- Quê?
- Deus deu tudo, mas
esqueceu o fuca!
A porta se abriu, e
os três desceram.
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Baseado em fatos reais.
2 comentários:
Eis o mistério das crianças. Graças ao Fuca!
Eis o mistério das crianças. Graças ao Fuca!
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