8 de maio de 2013

No ônibus







Eram duas mulheres no ônibus. As duas mulatas, de alguma idade indefinível, algo entre 20 e 40. A primeira, magra e com os olhos fundos, vestindo uma saia marrom até o tornozelo e uma blusa azul com os dizeres "Jesus me ama". Cabelo liso, castanho, preso num despretensioso rabo de cavalo baixo. A segunda, um pouco mais gordinha, com o rosto redondo e risonho, o cabelo crespo e curto, mas também preso. Sua saia bege caía até o chão e uma camiseta branca cobria os seios fartos.
E o menino. Filho da primeira, uns três anos, uns olhinhos vivos e bochechas sobressalentes que davam a ele um ar risonho. Comia um salgadinho fedido e, alheio à conversa das duas, olhava pela janela.
O meu registro começa com uma fala da de blusa azul:
- Porque o pastor, com a graça das palavras de Cristo, disse que não cabe a nós julgar.
- É, não há porque julgar.
- Jesus não julgava ninguém!
- É o milagre de Deus na terra!
- Jesus era mais do que um milagre.
- Muito mais! Jesus era tudo!
- Ele não era, é!
- Ele era, é, e sempre será!
- Sempre será!
- Graças a Deus!
- Graças a Deus!
Divertia-me com a discreta disputa das duas para saber quem louvava mais, numa dialética cuja síntese era sempre concordar na fé. Foi quando o pequeno interrompeu-as:
- Mamãe! Mamãe! Olha mamãe! Um fuca! Um fuca!
O ônibus estava parado no semáforo, ao lado de um fusca amarelo-colonial. Até hoje me impressiono como esse modelo automobilístico ganhou um quê mitológico, atraindo olhares das mais variadas gerações de crianças, quase como contos de fadas  O menino apontava para o carro e gritava seu nome repetidas vezes, com a boca e os dedos melecados de salgadinho colados na janela, os olhos brilhando de fascinação autêntica, como se aquele fosse um espécime raríssimo.
O diálogo sagrado das duas por um instante foi quebrado. Disseram algumas palavras de aceitação, apenas para corresponder ao entusiasmo do menino, mas logo voltaram ao assunto anterior. O menino calou-se quando o sinal abriu. Seus olhinhos acompanharam o fusca até que ele se perdesse em meio aos outros carros.
A segunda, da saia bege e rosto redondo, foi quem retomou a conversa.
- Esse mundo está cheio de gente perdida, de mulheres sem pudor, homens que só pensam nos prazeres da carne, gente drogada, viciada, perdida na vida. Falta Deus no coração dos Homens!
- Deus, que nos deixou palavras tão bonitas, e nos deu a vida, e nos deu tudo que nós temos.
- Todo dia dou graças a Deus por tudo que Ele me deu!
- Deus abençoou tanto a minha vida!
- A minha também. E dou graças a Deus ao dia em que conheci o pastor!
- Homem santo! Antes de frequentar o culto eu era uma perdida, graças a Deus hoje em dia estou mudada.Tenho tudo, nada me falta.
- E eu, então? Conquistei tudo de bom da minha vida, me tornei uma pessoa de Deus! E Deus só me deu coisas boas!
- Graças a Deus!
- Graças a Deus, nosso Senhor!
Enquanto as duas, ainda falando, já se levantavam para descer do ônibus, o menino retomou seu chamado, agora olhando firmemente para a mãe:
- Mamãe! Mamãe!
As duas pareceram elevar seu tom de voz. O menino persistiu:
- Mamãe! Mamãe!
Mais uma vez, o menino nada conseguiu. Dessa vez, com um tom de voz infantil que misteriosamente se destaca de todo resto:
- Mamããããããe!
O ônibus parou no ponto. Silêncio. As duas se entreolham. Alguns passageiros voltaram-se em direção à tríade.
- Faltou o fuca!
- Quê?
- Deus deu tudo, mas esqueceu o fuca!
A porta se abriu, e os três desceram.


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Baseado em fatos reais.

2 comentários:

Maíra disse...

Eis o mistério das crianças. Graças ao Fuca!

Maíra disse...


Eis o mistério das crianças. Graças ao Fuca!